UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R20]

Um caminhão, já com os faróis acesos, aproxima-se da praça, sem carga, vacilando sobre as pedras. Os feixes amarelos dos faróis, cortados pelas mariposas, iluminam o vulto de , radiosa na sombra mais densa e estrelada, a mão cheia de anéis sustendo o copo de vinho, oculto o rosto entre os cabelos dourados e centenas de asas sobrevoando inquietas as flores do vestido. Um cão e um velho, vindos de pontos opostos, cruzam a pequena praça sem ver-se, envolvidos um segundo pelos oscilantes faróis amarelos do veículo, o cão de rabo entre as pernas e o velho pensativo, olhos no chão ou em nada, um embrulho na mão, alheio ao frio repentino, às estrelas que luzem ao largo do dia de novembro, ao silêncio da cidade, ao mundo. Entra numa rua, o cão enfia-se em outra e o rumor do caminhão - o motor fatigado, a carroceria batendo perde-se em alguma transversal. Nossos relógios marcam doze e cinco, hora da sombra máxima. Grupos de operários, com, amarelos e vermelhos, capacetes vermelhos e amarelos, núcleo ruidoso de geradores móveis, perfuratrizes elétricas, lanternas, esburacam o asfalto, ferramentas e avisos de HOMENS TRABALHANDO, esburacam perto do Correio, do Correio, o estridor das máquinas, chão e paredes das lojas estremecem, o estridor, abafam o estridor o ruído dos motores e as buzinas raivosas dos transportes que despejam, a cada dia útil, nesta área, quatro milhões e seiscentas mil pessoas, a cada dia útil, vindas de todas as nascentes de todas as nascentes dos ventos e depois e depois arrastam-nas de volta, o asfalto, operários esburacam o chão. O Vale do Anhangabaú e os dois e os dois viadutos sobre ele, parte da Av. São João, a passagem de nível no encontro dessas duas artérias dilatadas e todas as ladeiras, todas, ruas, largos, travessas e alamedas, todas, num raio que se amplia, HOMENS TRABALHANDO, vibram sob o peso dos veículos. Os pedestres entre os carros atravancam-se entre os carros, os pedestres, tensos, as caras fechadas, alguns, pedestres, correm, estugados por varas implacáveis, solo e paredes tremem, estridor. Abraçados sob a chuva leve - agulhas frias - que o vento agita, observamos as proas harmoniosas dos barcos inclinados na areia. Ela descreve o rosto secreto e verdadeiro desse indivíduo chamado Olavo Hayano, o rosto só visível na obscuridade. Quando ouve o homem ressonar, apaga a lamparina, escruta-o. Tem duas vezes a idade do Olavo Hayano diurno e as sobrancelhas eriçadas avançam sob a fronte estreita em direção às têmporas: aí, descem, cercando as pálpebras pesadas. Quase desertos, ao entardecer, os gramados do Parque Ibirapuera. As águas do lago refletem as nuvens acobreadas e os anéis de cintilam sobre a direção do carro. "Brutal e grosso o nariz, de narinas largas; o lábio superior extenso; extenso e quadrado o queixo". Entre nós e a poderosa muralha de edifícios que fecham o horizonte flui o tráfego compacto. Vejo, através de sua descrição, a boca do intruso entre aberta na sombra, os dentes largos, o riso de quem se sabe invulnerável. (As águas ondulam na enseada, cor de estanho, entre os penhascos arredondados e as colinas suaves de Ubatuba, entorpecida, sob a neblina que emaranha a paisagem numa rede impalpável. "Arrancar do tronco o animal ou o seixo. Você preferiria viver e se morre é por acaso. Mas o pior de tudo é quando a gente aceita o corpo estranho e começa a pensar que não é tão mau viver com ele encravado". Impressão, por vezes, de que as gaivotas se embaraçam nos fios e logo irão tombar sobre os dois pesqueiros fundeados ao largo.) Os orelhas de Hayano, peludas, moles e longas, descem até ao pescoço com verrugas. Parece, mesmo dormindo, dizer a si próprio: "Toda a injustiça que eu fizer terá sempre o nome de justiça. Sobram-me a força e a indiferença necessária para usar a força. A força, sem isto, não nos pertence". O mais assustador é que, nesse espectro trevoso, falta uma parte do rosto. "Uma parte do rosto?" "Sim, há um vazio". Duas meninas brincam no gramado com um pequeno cão branco. Os cabelos ouro e ferro de parecem acesos nas pontas. Lemos os nomes dos barcos meio inclinados na areia. As colinas e penhascos, de um negror sem relevo, com manchas verde-garrafa, diluem-se em azul e cinza. O militar, distanciado dos seus homens e do carro funerário, observa, entre as ambiciosas torres habitadas do Banco do Brasil e do Bank of Boston, o Martinelli com suas duas mil janelas e o céu escuro sobre esses edifícios. Vai a menina de um a outro andar enegrecido, com um ente - peixe, ave ou embrião humano - crescendo no seu tronco, vai, usa os cansados elevadores e vagueia nas escadas com degraus de mármore, aflita e muda, ansiando pela queda. A chuva que começa, a chuva, começa a cair, a chuva, intensifica a desordem, a impaciência e o clamor das buzinas a chuva que começa, a desordem, travessas e alamedas, que, a chuva. As mãos até então e os braços entre si, o Ser recua a esmo, raso, abre os dois lados da boca e grita com a voz pela metade, exultante, preso ao seu também e ao seu desconexo. O carro fúnebre invade o subsolo de S. Paulo e sons da superfície chegam até à morta através das galerias negras; tambores e soldados em marcha compassada, correrias, galope de cavalos, o rolar dos veículos e o embate das línguas. As flores dos ipês rebentam, sulfurinas, em jardins particulares e avenidas. As construções jamais devem assentar na superfície do terreno: elimina-se, assim, o perigo de deslocamento lateral. Além disto, os corpos orgânicos, freqüentes nas camadas superiores do solo, não merecem confiança como base. Os bilros, talhados em madeira resistente, apresentam na parte inferior uma cabeça e na superior um cabo que serve de bobina: nele se enrola o fio. Seu peso e dimensões devem estar em relação direta com o fio a empregar e o gênero de renda que se empreende. Natividade corta uma nota alta da cantiga, suspende o manejo dos bilros e decide vencer a solidão, gerar em segredo uma família de sombras, sua. Volta a cantar, já grávida e feliz. Nascem filhos e filhas, morrem dois com alguns dias de nascidos (chora, trancada no seu quarto sem ventilação, lágrimas reais por esses dois mortos imaginários), os outros crescem e pouco a pouco desgarram-se, vão-se, somem no mundo: Natividade inventa-os e desfaz-se do invento, outra vez só e agora gasta, de útero seco. Sua voz ecoa, forte e comovida, sob os alicerces dos prédios, nos obstruídos corredores do subsolo, a voz das horas em que tece na almofada as rendas corrente cheia, flor no quadro, riso de Cecília ou coroa de rainha, seguem, voz e rendeira, subterrâneas, cortadas pelos fios elétricos e pelas vozes dos cabos telefônicos (eis, Natividade, o amor e o rompimento, as transações, os processos, as edificações, as demolições), avançam em curvas, cantora e melodia, mordidas pelos ratos e saúvas do báratro, turvadas pelo lixo da enxurrada, sucessivamente lustradas pelas águas dos condutos e contaminadas pelas podridões e fezes e mênstruos e urinas e escarros e vômitos e fetos abortados que descem pelas bocas dos vasos sanitános. - A indiferença do escritor é adequada à sua presumível elevação de espírito? Para defender a unidade, o nível e a pureza de um projeto criador, mesmo que seja um projeto regulado pela ambição de ampliar a área do visível, tem-se o privilégio da indiferença? Preciso ainda saber se na verdade existe a indiferença: se não é - e só isto - um disfarce da cumplicidade. Busco as respostas dentro da noite e é como se estivesse nos intestinos de um cão. A sufocação e a sujeira, por mais que procure defender-me, fazem parte de mim - de nós. Pode o espírito a tudo sobrepor-se? Posso manter-me limpo, não infeccionado, dentro das tripas do cão? Ouço: "A indiferença reflete um acordo, tácito e dúbio, com os excrementos." Não, não serei indiferente. Soa o telefone, alguém atende na portaria, passos rápidos na escada. Batem à porta do quarto. Atendo no corredor mal iluminado. instrui-me para o encontro, não mais um encontro como os outros, mas o encontro total, decisivo - amadurecemos para isto -, a sua voz soando de modo inesperado, lenta e plácida, com uma nota de solidão, como quem lê uma escritura, sem as irisações e dissonâncias que tanto animam o que diz. Encontro decisivo. A porta do quarto, aberta, ilumina um pouco a passadeira de linóleo, com as apagadas iniciais do hotel. Soa o carrilhão da Sé: hora e meia para o nosso encontro. Ainda? Gane, emperrada, a fechadura do quarto, como um cachorro na corrente que deseja fugir. Racha-se, como golpeada, uma folha da vidraça. Desço a escada (o corrimão tem o mesmo odor dos móveis, velho e deteriorado), saio, a tarde abafada, sigo entre vozes e passos rumo à Praça da Sé. Quem será este, frente à catedral? O Assomo Anônimo? O Não-Sendo? O Furado-às-Avessas? Ele: o que nasce em outro lugar e só surge onde está quando se foi. Muda de cor, como se muitos discos transparentes - azuis, verdes, vermelhos - flutuassem, cruzando-se, entre o Sol e a praça. Ele e os passantes, os veículos, o chão, a face ensolarada dos prédios. Volto-me: imensa, vacilante, cristalina e leve pirâmide de corrupios vem e pousa, mais elevada que as torres, ante a catedral, sem interromper ou alterar os rugidos de vagos animais subterrâneos e as vozes angustiadas dos meninos que gritam à frente das lojas. Solene. Os corrupios giram, festões unindo as pontas. Abro as mãos. As cores dos corrupios nos meus dedos. As pernas da visagem sobre garras que pousam como sombras, sem agarrar o asfalto oleoso onde se refletem. Triângulo? Ângulo? Não, um A. Garras imóveis, erguido, aproxima-se o A, ouço o giro, os corrupios. A. "Como narrar a viagem e descrever o rio ao longo do qual - outro rio - existe a viagem, de tal modo que ressalte, no texto, a face mais recôndita e duradoura do evento, aquela onde o evento, sem começo e sem fim, nos desafia, imóvel e móvel? Vejo no mundo, na superfície do mundo, nas suas águas, um convexo e um côncavo." Somos, junto à grande árvore, e nos seus ramos desliza alguma asa, os únicos seres humanos. Cintila sobre nós um céu armado para outras noites e encontros, o céu para nós oculto e que esplende aos nossos pés, pisamos à meia-noite os astros que ora nos cobrem e contra os quais se projeta, nódoa, a fronde negra e raiada de brilhos da árvore única. Um halo frio reveste e distancia as platibandas das casas e os vidros luzem roxos. A linha estendida entre Sol e Terra cruza o centro da Lua, disco negro, cerca-a uma claridade azulada sobre a qual logo se fecha, noturno, o céu constelado, uma última língua resta, rutilante, explosão demorada resvalando na Lua, e , ao mesmo tempo visível e oculta pelo eclipse, os cabelos com um brilho de peixes na penumbra, vulto vago, ondeante, árvore irreal, caminha para mim, as mariposas indo e vindo entre nós como se nos atassem. Que afortunada e imponderável parcela então desfaz os cálculos dos astrônomos? Na Praia do Cassino, cem mil olhos atentos vêem o Sol enegrecer de todo.

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