UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R12]

Menos anuviados e mais próximos, cessada a chuva, os dois pesqueiros, barcos. Flutuam algumas gaivotas no ar cinzento: precipitam-se, flechas exatas, contra os peixes ligeiros e outra vez alçam vôo. Sobre o lance que liga o cais à terra, vêm em nossa direção o pescador enluvado e a companheira do ciclista. As pequenas cabeças com movimentos de pássaros, certa lassidão no andar e um jeito de levar a mão esquerda à cintura. Semelhanças. Ouço a voz da moça, como se estivesse a dois passos de nós, dizendo à velha: "Quando ele for embora, pode ficar com os peixes. São seus." Voz afável e sem calor, com algo de mecânico. A velha, sentada, move a cabeça e ergue a mão. Novamente a vara do ciclista encurvada e a ostensiva alegria do seu grito. As rabanadas no ar. O equilíbrio de forças sobre a plataforma não chega a ser desfeito - apenas a simetria é alterada - com a ausência da moça e do pescador da esquerda. O ciclista, sem a companheira e ainda de costas para o mar, supre a exigência de peso - ou de presença - que flutua à sua espalda, audível, entre o guarda-chuva e a pedra. Por que entendo que esta unidade melodiosa ante nós organizada terminou ou declina para o fim? Talvez não me engane e a dissolução que julgo próxima haja realmente começado no contemplador: em mim e não no que ocorre sobre o cais. Também pode suceder que uma proporção exista, necessária, entre o sistema - o ritmo - articulado no espaço e a sua ressonância. Pergunto, entretanto, como ante um desperdício e certo da negativa: "Isto é tudo?" Colina a impedir que se amplie um caudal exuberante, a saliência arredondada do tênar, na palma larga de , parece reprimir o traçado violento onde o seu destino pode estar escrito. (Em que ponto das linhas enlaçadas, fundas como cicatrizes, inscrevem-se meu nome e este dia?) Repercutem, nos seus gestos, também modulados e vivazes, a harmonia e o ardor das mãos. As gaivotas, imóveis, menos brancas, quase transparentes contra o céu cor de pó. Diluem-se no ar? Hirtas. Integram-se na súbita e rápida cisão que interrompe o fluxo das coisas: um hiato onde cessa, cúmplice, mesmo o rumor das águas. Todas as figuras no cais petrificadas, a mulher de blusa rubra, o guarda-chuva rasgado, o plástico amarelo, fósseis numa lâmina. Na substância dessa pausa, na fixidez e no perfeito silêncio, um som nasce: um zumbido e com ele o fluxo retorna, outros sons e o movimento, ressoam as ondas plácidas, grita o pescador afortunado e novamente ágeis - as gaivotas descem sobre os peixes, ávidas. O zumbido, mesclado com o bater de cascos de cavalo e o som de um guizo (eu cerro os punhos), define-se: motor de automóvel. Vem com ele, invisível das ruas desertas de Ubatuba, conduzindo outros passageiros - ou talvez os mesmos -, o espectro de alguma carruagem? Anacrônico e irreal, surge, acesos um tanto ostensivamente os grandes faróis niquelados, um Packard dos primeiros anos 30, verde. A capota escura, os raios trançados das rodas e a lona branca dos pneus de emergência, entre o estribo e os pára-lamas negros, molhados da chuva, brilham como novos. Vejo, quando faz a curva à nossa frente, o esbelto corcel de metal sobre o capô, lançado - um salto - na direção do mar. Abrem-se as portas, desce um casal (permanecem acesos os faróis) e três meninas de casaco cinza voam em direção ao cais. Há, nas crianças, qualquer coisa de sôfrego, implacável e urgente. Rápidas, vão de um lado para outro, caladas. Executam um desígnio? A maior, de súbito, como se ouvisse uma ordem, aproxima-se do ciclista; as outras, imitando-a, plantam-se junto a ele e ficam imóveis. As três com seus casacos cinza, à luz cambiante e trespassada de surdas reverberações. Aves predadoras à espreita: uma voracidade muda, imóvel e pronta a manifestar-se. Escrutam ou integram-se, submissas, na rara conjunção rítmica que - emissárias do acaso ou do destino, ou, talvez, de uma terceira entidade dissimulada sob esse duplo rosto - vieram conduzir do abstrato para o vivo (transposição anunciada no tenso eixo estendido entre a mulher de vermelho e o pescador venturoso) e simultaneamente perturbar, corromper, romper? A criança mais alta, lenta, inicia, vinda quem sabe de onde, como um cerimonial, os poucos atos precisos que pouco expressariam em circunstâncias diversas e aqui esplendem com intensidade, iluminando as nossas vidas e o nosso encontro no mundo: curvando-se, abre o cesto onde jazem os peixes. A pescadora retira da água, pela vigésima vez, o anzol sem isca e sem peixe. Agudos grasnidos cortantes pontuam o confuso diálogo entre as meninas (ou pássaros?) e o homem: fulge várias vezes, argêntea, a palavra peixe. A mais nova, solerte, introduz a mão no cesto e devolve ao mar um dos peixes. Brilham nas seis mãos infantis, como facas, os corpos laminados dos peixes. Vêm os quatro (as vozes das crianças, agudas e tensas) em direção à velha, obstinada e muda - um peixe. Desconjunta-se o vívido equilíbrio de forças e todo o peso do quadro incide agora sobre uma asa do cais, a direita; mas é em torno da pescadora, do lado oposto e mais perto de nós, que o evento aqui articulado segundo as leis da narrativa e com precisão de todo improvável (uma vida inteira pode decorrer sem este encontro prodigioso e legível de alguns fragmentos à deriva na explosão do mundo, tão raro sabemos, com nostalgia e júbilo - que ninguém o conhece duas vezes, por mais que viva) vai culminar, simulando coerência e mesmo certo caráter augural: não há quem leia nas vísceras das aves e dos peixes? As meninas e o homem estão junto à pescadora, mas e eu sabemos, tão certo como se aguarda, num verso ainda inconcluso, o advento - inevitável - da tônica final, que as meninas de cinzento não surgem em vão; invasoras egressas de outro mundo, precipitam-se de longe (das nuvens?) para arrebatar esses peixes. O casal do Packard (os faróis ainda acesos e mais luminosos na tarde que escurece rápida) aborda o pescador e pede os peixes. As meninas saltam para o carro, que oscila sobre as molas: no interior, sombrio, cintilam os peixes. Vai-se, com vara e cesto leve, o ciclista. O pescador com plástico amarelo dirige-se para o centro do cais, irresoluto. Fecha o guarda-chuva o de calção azul e tudo se decompõe. Volto a ouvir, quando o carro se afasta, metal de campainha e de ferraduras em lajedos, sons do veículo invisível antes unido ao Packard como um sortilégio e que contrário rumo em se dirige agora.

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