UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R16]

Silenciamos. , o corpo estendido junto a mim, tem um braço por cima do meu ombro. Ouço claramente, pronunciadas por vozes desiguais, quatro ou cinco palavras desconexas: báculo, sacelo, prézea, fabordão. Como se alguém falasse de dentro dos colchões ou do exterior, rente à janela. Apuro o ouvido. Aquietaram-se as magnificentes aves negras. A viagem fluvial decorre e, para sempre, é, na sua fixidez móvel. Deve-se tentar e eu faço a tentativa. Há um cardume e o chão enigmático mostra a passagem de uma rês, não sei se negra ou branca. Olho e busco expressar. As gemas de vidro nas sandálias de adquirem um tom negro e a sua pele - como imponderável e um tanto irreal - absorve a luz vazante. Um vento rápido cruza as ruas sossegadas, revolve os seus cabelos, o vestido esvoaça, flores do tecido, ela ri e dá-me o braço (este peso, esta indefinível leveza!), o rosto junto ao meu, finas rugas tecendo-se nas pálpebras. Sombrios os armários, as gavetas, as malas, os porões, os fundos dos tonéis, os oratórios. Silenciam as cigarras de novembro, enganadas pela noite que se infiltra entre os ramos das árvores; mariposas começam a agitar-se nos seus esconderijos diurnos e aventuram-se indecisas no meio-dia turvo. Cassações e suspensões de direitos político: aguarda-se nova lista ainda hoje. A faixa do eclipse total, entretanto, fica a alguns poucos quilômetros de Rio Grande. Conduzidos por notícias imprecisas, fazemos extensas e dispendiosas viagens para observar, na sua plenitude, um fenômeno que se prevê incompleto na cidade. Este engano, porém, lido de outro modo, será ainda engano? - A extirpação, Abel, será a morte, sim, será a morte, sabemos. Arrancar o coração e continuar vivendo? Mesmo assim, se você alcança o ponto extremo (você precisa livrar-se do bicho morto no seu tronco), hesita? Raramente. Águas e terras, num oval que se inclina de Noroeste a Sudeste, sofrem a ação do eclipse. O ovo dessa noite rara e breve, cuja borda superior, nascendo no pacífico, une em um arco a Califórnia à Geórgia, corta o Atlântico e alcança, descendo, o extremo meridional da África, abrange as Caraíbas, o México, todo o continente sul-americano, extensa área deserta da Antártida, escurecendo à medida que se aproxima do núcleo: uma tangente sobre o paralelo 32, à altura das pastagens quase sempre planas da fronteira. Os foguetes, sobre as plataformas, três das quais já vazias, perfilam-se ao longo da praia do Cassino, potentes e precisos, apontados para os astros com seus bicos de aves aquáticas. Cerca-os, arco agitado e compacto com quase dois quilômetros de raio, uma multidão que aos poucos emudece, mantida à distância por tropas bem armadas do 9.° Regimento de Infantaria e do 3.° Batalhão de Guardas. Todas as passagens estão obstruídas por soldados, de modo que os veículos - largados nas calçadas, no mato, fora das estradas ou à margem de taludes - formam por trás da multidão uma barreira de carrocerias, sólida e sem ordem, os vidros refletindo um Sol cortado. - O que aterra no rosto fosforescente do Iólipo é ser quase sempre invisível. Também o modo como se revela: na obscuridade. Ele se oculta como um duende dentro do rosto diurno. Como um duende? Não, como um estranho. Alguns são belos - lembram a face de um anjo - e mesmo assim amedrontam. Que sucede, então, quando - além da sua mudez e da sua estranheza - esse rosto é disforme? Assim Olavo Hayano. Nele, o rosto oculto, fora do meu alcance, é de monstro. Corpos invisíveis, com pálidos vestígios de conversas, de outros sons, metálicos ou vítreos, insinuam-se de leve pelas telhas vãs ou cruzam a porta entreaberta do pavilhão onde jaz o grande corpo de Natividade, maior depois de morta, duas grandes velas ladeando a cabeça e duas ladeando os pés, três das quais apagadas para evitar desperdício, coberta com um lençol barato e os calcanhares ultrapassando o catafalco curto, destinado a velhos, seres que diminuem, ondulam entre as tesouras cheias de teias de aranha, deslizam sobre os dois bancos sem encosto, agitam a única chama e a barra do lençol, esgarçada. São antigos domingos que visitam a negra, cheirando ainda a oliva, a folhas de louro, a cebola, a queijo, a vinho. Na sombra do jardim, avançam três vultos e uma voz impessoal de freira alude às relações entre os velhos e a morte: - Ficam violentos, quando sabem que um dos internados entregou a alma a Deus. Só depois que escureceu trouxemos o corpo para o velório. Seu hábito branco e o rosto do homem – ele marcha recuado, de cabeça baixa -, levemente alcançados pela claridade que marca as junturas das janelas, hoje fechadas com precauções excessivas, flutuam entre os girassóis ocultos. Falham, por vezes, ou tornam-se mais leves as passadas da mulher que segue junto à freira, como se ela abrandasse o peso do corpo, atenta ao estalar de juntas, às tosses ao arrastar de urinóis e às frases cortadas que enchem os dormitórios. A freira adiantou-se, abre a porta e o casal aparece à luz da vela: ele corpulento e assustado, ela com o rosto meio oculto entre os cabelos soltos, um leve impermeável castanho sobre os ombros. A irmã, apressadamente e olhando de viés, acende as outras velas - as quatro, agora demarcam um retângulo - e ajoelha -se no chão. O homem contendo as lágrimas, descobre o rosto da negra. A mulher, do outro lado da morta, a fronte estreita inclinada para a frente e toda a face iluminada pelas quatro chamas, fixa o homem através dos olhos meio fechados e de dentro desses olhos dois outros olhos o fixam, negros, sem contemplação, abertos e negros, com estrias de ouro. Ela diz a si mesma: "O pesar que acaso ele sofra não o resgata em nada”. Abre ainda mais, como se o ar pesasse, a boca sempre cerrada. - Antes dos doze anos, duas coisas, apenas, distinguem o Iólipo das outras crianças: em todos os seus sonhos, em todos, surgem imagens de mortos com acessos de ira; e há, em torno dele ou dentro dele (impossível saber) um Vazio. A substância das coisas passa através do Iólipo e transita para o Nada. Mas nem todos percebem esse vazio ou sucção. A princípio, o Iólipo não reconhece os personagens que surgem nos seus sonhos: até aos doze anos, normalmente vimos poucos mortos. Passa-se algum tempo antes que os pais identifiquem aquelas sombras furiosas que batem portas e agridem-se, com gritos, chicotes e objetos perfurantes, e descubram com isto a natureza do ser engendrado através deles. - Sob a opressão, os atos mais simples - comprar um selo postal ou alegrar-se - são atingidos e transformam-se em núcleos de interrogações. Toda alternativa faz-se dilemática e nenhuma opção pode desconhecer isto. Mais: mesmo sendo a opressão um fenômeno brutal, o peso e o significado dos atos, na sua vigência, crescem na medida em que abrangem o domínio do espírito. Segue-se que o ato criador é particularmente exposto a tal emergência. Lado a lado, alongados no leito, assemelhamo-nos, sob o lençol, a esses monumentos funerários de casais felizes ou que procuram fazer do seu próprio matrimônio, talvez deplorável sob o baldaquim conjugal, um exemplo edificante, modelo para os noivos e cânone para a família. As estátuas gizantes de marido e mulher, sempre esculpidas em trajes de grande cerimônia, pálpebras cerradas e mãos sobre o peito, estendidas lado a lado com recato, insinuam uma união perfeita e indestrutível, mas não se tocam: são, afinal, figuras paralelas. Nós, de olhos abertos e voltados para o forro ainda invisível, estamos nus e de mãos dadas. Temos, das esculturas, apenas a imobilidade e a mudez. Simulando a eternidade, evitamos mover-nos cessado o duro pranto (choramos, então, por nós e por alguns mortos) e já não queremos falar, receosos de que novas palavras, como num texto que alcançou certo grau de precisão, sejam supérfluas ou nocivas. Por outro lado, recusamos dormir, suportando uma presença cáustica: a descoberta deste grave amor que em nós estende suas folhas urticantes. A união na carne, sabemos, é agora temporã entre nós. Nos nossos corpos, desejados e ainda estranhos, nos quais ecoam experiências acres - a esterilidade, a morte e outros danos -, descobrimos certo caráter sagrado e como que nos apuramos, na abstinência, de mãos dadas, mudos e cercados de trevas, para o mútuo e inevitável conhecimento. Canta um sabiá, à distância ou ocluso. Na fronde do seu múltiplo corpo? No seu corpo ou no mundo, outros pássaros e galos escutam-no, respondem.
O seu perfil nasce da sombra e o darão do amanhecer delineia as rugas do lençol.

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