UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R9]

Deixa-se boiar nas águas ondulantes e cheias de reflexos, a espuma desfazendo-se junto às axilas e em torno dos ombros opulentos. Mergulho, olhos abertos, sob o seu corpo, deslizo sob o corpo que flutua e creio ver, meio ofuscado, entre os reflexos, outro corpo: vejo, como se os reflexos das águas penetrassem-na, pontos luminosos, roxos, verdes, brancos, não simples reflexos, signos. (Letras?) - Empenhado na decifração e também no ciframento das coisas (embora, quase sempre, sem êxito), recuso deter-me no que é visto e captado sem esforço. Investigo aqueles planos ou camadas do real que só em raros instantes manifestam-se. Eu e olhamos com atenção as réstias do Sol sob as árvores. A sombra das copas, surgindo e apagando-se à mercê do vento, pequenos círculos claros reproduzem o disco solar nas calçadas e nas ruas. A luz invade-o e isso manifesta-se nas réstias, onde uma pequena sombra, quase imperceptível, insinua-se nos círculos. Passa pouco das onze e o ar parece mais brando, como se já fosse morrer este dia de novembro. O marinheiro, o soldado, a criada, o servente de obras, o arrombador e também agora, um pouco recuada, coberta de pintura, puta ordinária, a filha de Natividade, possível e única, aproximam-se da cama. Ouve-se um bater de roupa, de tapetes, de portas, de louça, de bilros, de talheres e a voz de Natividade cantando, voz alegre e forte, indo e vindo. Os filhos que deixa de ter, desfiando, em troca do destino deles, apagado e difícil, o seu próprio destino solitário, ajoelham-se entre as duas velhas aterradas. Rezam e olham a agonizante, todos, menos a puta: de costas para o grupo, olha o vulto que atravessa devagar o jardim ensolarado, de vestido branco, uma criança negra, chapéu de palha e à mão uma peneira. Sobe a menina os degraus do alpendre, vê-se no leito de morte e contempla os adultos, receosa, como se rogasse a compaixão de todos. A puta dá um passo em direção à criança, descobre a sua cabeça e afaga-a. Pesa-a, mesmo assim, com olhos vingativos. Natividade, pela última vez, tenta erguer as mãos. As fronteiras úmidas e as janelas cerradas, flâmulas imóveis e descoradas no posto Esso deserto, gaivotas sobrevoam a enseada cinzenta. Dois pesqueiros ancorados à distância e oscilando de leve, rompem a superfície uniforme do mar. A chuva afasta os dois pequenos barcos, separa as colinas em gradaçães de cinza e acentua a letargia em que vive Ubatuba a maior parte do ano. Delineia-se contra a paisagem marítima e como trespassado pela chuva fina, pelas gaivotas, pelos cascos harmoniosos das canoas emborcadas na areia, o rosto de , meio encoberto pelos cabelos. A linha do nariz, implantado com firmeza e talvez no extremo limite do equilíbrio: a ponto de romper a harmonia dos seus traços, reflete, visto de perfil, a reta da fronte, ir em extensão e rigor. O espaço entre as narinas e os lábios ir um pouco salientes, de corte preciso e que ela tende a sempre conservar descerrados, como se lhe faltasse o ar, é restrito. Tão nítido quanto os lábios, revela mais brandura o queixo, sobretudo quando ri. Não fala sem que projete os lábios para a frente e então observo, entre eles e a ruga (breve curva ascendente) que prolonga as comissuras, um jogo discreto, variado e festivo. Vacilo entre contemplar, como um surdo, esse mover de boca e ouvir como se nada visse a sua voz rica em tons, agora calma e fresca, quase de criança, com rápidos acentos ásperos. Há em todo o seu rosto, apesar da força que sugere, uma atmosfera infantil. (Em que coleção de brinquedos antigos fita-me espantada, a cabeleira cor de aço e cobre caindo frouxamente sobre a nuca, uma cabeça de boneca semelhante à sua?) Pequenas rugas concentram-se nas pálpebras e uma sombra parece adulterar a sua juventude: ela sorri. Nos olhos claros, de cor indefinida, dentro deles ou mesmo coincidindo com eles, outros olhos - com outra idade e decerto olhos de outro rosto - me fixam, esteja ou não voltada para mim, fixam-me com avidez. Sob a pele transparente, à qual afluem ondas de sangue ao mínimo estímulo, pressinto - como quem procura recordar - a face escondida e que, mesmo sem ver, contemplo. - Os textos, de certo modo, existem antes que sejam escritos. Vivemos imersos em textos virtuais. Minha vida inteira concentra-se em torno de um ato: buscar, sabendo ou não o quê. Assemelham-se um pouco às de um desmemoriado minhas relações com o mundo. Caço, hoje, um texto e estou convencido de que todo o segredo da minha passagem no mundo liga-se a isto. O texto que devo encontrar (onde está impresso ou se me cabe escrevê-lo, não sei) assemelha- se ao nome de uma cidade: seu alcance ultrapassa-o - como um nome de cidade -, significando, na sua concisão, um ser real e seu evoluir, e as vias que nele se cruzam, sendo ainda capaz de permanecer quando tal ser e seus caminhos estejam sepultados.

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