UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R13]

O céu de Rio Grande, nesta manhã, radiosa, manhã, embebido de uma luz que eu diria retorcida, como se a Lua agisse de algum modo sobre os raios do Sol que o eclipse reduz, adquire um tom e peso vesperal. - A Viagem e o Rio. Trata de que, Abel? - Do tempo mítico e das suas relações com a narrativa. Percebe-se, mesmo a olho nu, que a luminosidade do Sol amortece, mareada pela conjunção celeste. , evitando agora a proteção das zonas sombreadas, afasta-se das árvores e vai por onde está ensolarado, compensando a queda da temperatura. Os urubus planam mais baixo e as aves miúdas ampliam os intervalos entre um vôo e outro, pulsam mais tempo nos ramos ou nos fios elétricos. Lançam pequenos gritos inquietos e parecem ao mesmo tempo desejosas de fugir e entorpecidas, como sob os olhos de serpentes. é a primeira a ver, na amplidão de um azul cada vez mais profundo, o rastro branco e ascendente do segundo foguete, um Nike-Javelin, apontando-o com a mão esquerda adornada de anéis, enquanto o grito da multidão aglomerada na praia do Cassino aclama o vôo e ecoa - um urro - sobre os telhados. Leões? Pergunto se me engano ou se algumas estrelas - embora sem firmeza, como se viessem à tona e pouco depois afundassem - começam a perfurar a luz meridiana. Ocupamo-nos, rindo, em descobrir novos lumes fugitivos, ao Sul, a Nordeste, a Sudoeste, de repente eu ouço a queda, em que águas?, de uma rede de pescar, sopra no meu rosto um vento úmido e noturno, e eu olho para , imóvel: ela finge apanhar grandes feixes de chamas, como se o asfalto fosse um campo de fogo que fulgisse sem nos envolver, finge apanhar esses feixes e jogá-los para o alto, onde se fixam. Que me diz, à medida que o espaço celeste parece absorver as fogueiras imaginárias? Fala e eu não traduzo as palavras proferidas: atento para a voz e a voz não é a mesma, não é a mesma, outra garganta ressurge na sua e a voz rouca, uma voz conhecida e pontuada de tons viris não é a mesma, não lhe pertence. Tomo-a pelos pulsos e escruto-a, não apenas com os olhos, com o meu ser total escruto-a, como se fosse - ela ou seu rosto - um vaso de recordações ou um texto enigmático e a partir de então indispensável. - Que está vendo? (Sim, esta é a sua voz, instrumento restrito e usado com sabedoria.) - Nada. Nada, ainda. A luz do Sol vara as copas das árvores e as réstias estampadas no chão repetem o que, através de um vidro esfumaçado, observamos: a esfera de fogo sobre a qual a Lua avança, morta e negra. As réstias sob as árvores, moedas corroídas. - Sabe, ? Abro os olhos no âmago da noite, como se a noite fosse o mundo. Abro as mãos ante os olhos e não vejo as mãos. Nem assim me satisfaço: o quarto não parece escuro como deveria. Pressiono as pálpebras, assim, os dedos sobre a testa. Abertos. Crio um casulo de trevas e no centro da escuridão faço a pergunta. - A pergunta? O carro negro, com o ataúde de Natividade, pára no cruzamento, perdido entre automóveis, ônibus e misturadoras de concreto. O barracão para a guarda de materiais - rezam os manuais de construções - deve ser feito com tábuas ordinárias já usadas e tijolos assentados simplesmente com barro. Finda a construção, tijolos e madeira, intatos, podem ser utilizados de novo em outra obra. O sol desta manhã de fevereiro cresta as coroas de rosas e as cinerárias jogadas sobre o ataúde. Dois únicos veículos acompanham o carro fúnebre: uma viatura do Exército e um Chrysler negro, com algum uso, lataria e vidros espelhando. O motorista, mãos firmes no volante, ignora o tumulto, estilo de ação que repudia e considera ameaçador (não vá proliferar, na desordem, algum princípio insólito). No seu rosto espesso e impassível, na rigidez da postura, pressente-se uma espécie de susto resguardado por poderes. Como se a arma que pesa na cintura, no coldre cheirando a cavalo, não lhe trouxesse nenhuma segurança e ele sempre esperasse, sem jamais dignar-se a olhar para trás, uma bala no cachaço. O calor acelera o fácil apodrecimento de Natividade, no caixão de pinho, sob as flores sem vida. - Exasperante, Abel, a presença do corpo estranho na carne. É como se doesse o coração e você, para livrar-se da dor, se dispusesse a arrancá-la. O corpo estranho nos envenena e envenena o ar. Amar ou ser amado, coisa de valor discutível. Não acha? As fontes do amor, as direções do amor, sim, importam. O trem reduz a marcha, e as paredes e objetos que passam na manhã ainda enevoada, fuliginosos, lúgubres, com uma espécie de indefinível dureza, como se os contagiasse a vizinhança dos trilhos e das locomotivas, dão-me a impressão de coisas naufragadas ou explodidas, sem uma ordem que de algum modo as torne coerentes: não leio o que vejo. Pilhas de madeira jogadas à margem da estrada, guaritas de ferro, montes de areia, sucatas nas quais se enredam negras plantas selvagens, ônibus lá embaixo, telhados de duas águas e mesmo os números e letras dos vagões, tudo, visto do leito, através do vidro baço, parece-me isolado para sempre no seu próprio horror, furos mal obstruídos no mundo, como os pedaços de lona e papelão, irregulares, que disfarçam as vidraças arrombadas daquela velha fábrica ou depósito. Sopra um vento úmido na plataforma, com certeza não falta nas manhãs de São Paulo, mesmo fora do inverno, esta cruviana que me fura o suéter e o terno de brim. Gemini 12 bate recorde no espaço e encerra com êxito sua missão. Conforta-me, apesar do frio e da sufocação que me provocam as grandes estações ferroviárias, evocar, enquanto sigo entre os outros passageiros, a existência, nesta cidade estranha, de uma ilha familiar: em segredo, alguém espera por mim. - Mesmo que fosse possível, à mãe de um Iólipo, conceber ainda, não é de esperar que se arriscasse: a placenta do Iólipo assemelha-se a um ouriço. Seus espinhos, claro, não magoam a gestante durante a gravidez. Mais ou menos assentados, só começam realmente a crescer e endurecer, pode-se dizer que por malícia, nas duas ou três últimas semanas que antecedem o parto. São implantados, sobre a placenta, em várias direções. Imagina-se a dilaceração que provocam. É como se a mulher parisse garfos ou cacos de garrafas. Nunca, por mais que viva, volta a curar-se inteiramente das feridas e sofre até à morte de hemorragias temporárias. Mesmo as que, por acaso, submetem-se à cesariana, padecem com os espinhos. Não é preciso acrescentar que pai e mãe nunca ficam solidários ante essa experiência. Abre, sentada na cama, o quimono com crisântemos azuis e as luzes do parque, móveis, refletidas nas paredes brancas, revelam em parte o ventre e os peitos volumosos com as rosetas vibrantes, passeamos de mãos dadas ante as barracas de prendas e nos dirigimos para o carrossel, range o carrossel em torno do eixo ao morno vento noturno de novembro, negras aves noturnas rangem as asas (articuladas com dobradiças velhas?), ameaçam entrar pela janela aberta e cruzam os agitados reflexos que animam os cabelos desprendidos de .

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