UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
|
Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
|
|
Imprimir tudo Voltar
Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R18]
Abre-se o portão do Asilo e os pneus do carro fúnebre esmagam o saibro do jardim levando o corpo de Natividade; o Chrysler, vagarosamente, segue-o,
sob o olhar de alguns velhos sentados nos alpendres; a viatura do Exército, estacionada na rua, dá partida. O cortejo está completo. Duas religiosas, com seus
hábitos brancos, persignamse e fecham o portão - há um breve tinido de correntes. O capelão do Asilo, a batina cinzenta desbotada e o guarda-chuva aberto
comido de traças, vem no seu andar senil e pára no centro do jardim, ao sol, junto à escultura pintada que também sustenta um guarda-chuva: a ponteira voltada
para cima verte um fio dágua. O padre move os lábios, rezando ou chupando as gengivas. Ouve-se, no silêncio apenas alterado pelo rumor distante do tráfego e
dos passos das freiras na aléia central, a soturna chuva artificial em torno da escultura.
- A esterilidade dos iólipos parece comprovar a sua natureza acidental ou experimental. Como se uma corrente negativa, ainda em formação, sondasse
às cegas, através deles, a possibilidade de surgir em série e encerrar o ciclo humano. A glande dos iólipos é gélida.
Alguém, sustendo ainda no ar, em uma ou outra janela, o vidro enfumaçado com que segue o eclipse, olha-nos passar, mãos enlaçadas, espectros
ociosos sob o meio-dia tíbio. O sol, lunar, banha-os frontões das casas e os vidros emitem reflexos pálidos. Nossos passos realçam o silêncio nas ruas pouco
transitadas. Ouvimos o ruflo das asas quando os pássaros desorientados levantam vôo e vozes de mulher atravessam quarteirões, alcançam-nos, claras como se
atiradas de trás das persianas. As lojas fechadas e as aulas suspensas. Cinqüenta mil pessoas, mantidas à distância dos foguetes pelos cordões de segurança e
suas automáticas, comprimem-se na Praia do Cassino, muitas desde a véspera, tendo passado a noite de Verão na areia, nos carros ou em tendas. Vistosas e
inúmeras bandeiras, trazidas para que os escolares acaso extraviados se orientem, flutuam sobre o acampamento. Cornetas, campainhas, gaitas, assovios,
garrafas quebradas, gritos, cascas de frutas jogadas à distância, batuques, vozes, um hino marcial. Percorre as cinqüenta mil pessoas um silêncio, uma vaga de
silêncio como um rumor - e os mastros das alegres bandeiras aquietam-se: prepara-se o tiro do Nike-Apache, último foguete a ser lançado antes que o eclipse
alcance o apogeu.
- Avesso à indiferença - da qual desconfio - e fazendo da minha incompatibilidade com os tempos que passam uma espécie de justificativa para o
exercício continuado (e, posso dizer, desesperado) deste ato suspeito e pouco oficial de escrever, continuo ordenando meus artefatos de letras. Procuro entrever e
nomear um fragmento do que jaz sepultado sob as aparências. Assoma, entretanto, nos meus textos conflituosos e híbridos, a História - dissonante, sem
integração possível -, em uma de suas manifestações mais soturnas. Um quisto: cáustico e arbitrário.
No céu límpido - não um céu noturno, mas um céu tumultuado, onde noite e dia coincidem -, no anel do horizonte, brilham constelações desconhecidas,
tanto sobre os tetos das casas como do lado do mar. Na calmaria, o som das águas se espraia, passa sem fazer sombra um bando de pássaros, uma onda cor
de breu ondula com mais ímpeto ao longe, cintilante, o refluxo cumpriu-se e a preamar da tarde se anuncia forte. Algumas bandeiras ainda pulsam, as cores
demudadas e envoltas desde o extremo do mastro numa espécie de névoa, um reflexo tenso e sufocado.
Parte o Nike-Apache com seu rabo de chamas, sobe, invisível, entre as cortinas grossas de fumaça e areia, cem locomotivas de vento e de fornalhas
atroam soltas no ar, todas as bandeiras despertam num golpe, estalam tesas sopradas pelo tiro como se fossem despregar-se dos mastros, copos de plásticos,
pedaços de papel e folhas secas voam, voam os toldos dos quiosques de frutas, estala o madeirame dos tetos e os pássaros fogem atordoados das árvores que
esse vento zurze. Cheira, o vento, a lacre fervendo. Sobrevoa-nos, baixa, uma nuvem de aves, os bicos mudos: parecem voar com raiva. Ecoa na praça, apagado,
o brado das cinqüenta mil bocas na Praia do Cassino e eu mostro a no céu cada vez mais profundo e estrelado o Nike-Apache - um traço, diamante e fogo.
Acossado pelo cheiro de carniça que vem das áreas internas e pelos murros impacientes dos que chamam em vários pontos do prédio, nos corredores com
lâmpadas queimadas, os elevadores surdos, subo os degraus do Martinelli. Apodrece o faustoso palácio, com suas 2.1 janelas: alguns dos moradores
habitam nas privadas. Alcança-me, cada vez mais longínquo, nas escadas sombrias, o som de um realejo e a mesma melodia, incansavelmente repetida, filtra-se
com a luz vesperal entre as cortinas da sala.
A mãe de , de negro, o que exalta o brilho e a cor das pernas, contempla-nos - a mim e ao homem sentado numa das poltronas de veludo verde - do fundo de
um ódio incurável e que nada mais disfarça. Linhas como as das mãos cortam o rosto ceroso, cercado pelos cabelos tingidos de vermelho -garança e que tocam
os ombros em ondas. Seus gestos aspergem um perfume intenso e réles. O homem, com luvas leves, segurando o jornal e uma corneta de chifre, tem qualquer
coisa de um morto – bem moço, ainda - vestido para o enterro. O presidente Castelo Branco, rodeado de crianças, concede autógrafos no V Salão do
Automóvel. O globo de luz estala sobre nós como se um besouro, preso, buscasse escapar. As portas, o estuque, o tecido com rosas cor de chumbo
sob o vidro da mesa entre as poltronas, o cheiro do jornal, as paredes pardas, pintadas a óleo, com grinaldas verde-sujo, o realejo, os mosaicos do piso, tudo se
aproxima: como os ratos que saem dos buracos quando as casas silenciam. O homem leva, rígido, a corneta à altura do rosto: "Eu estou muito bem. Vejam". Voz
clara e vazia de tudo, contrastando com as nossas, cheias de raiva ou ânsia, mas vivas.
- Há textos com preocupações idênticas aos meus, voltados para a decifração e mesmo para a invenção de enigmas (o que também é um modo de
configurar o indizível). Textos realizados com serenidade, e, vistos sob certo ângulo, não contaminados pela opressão. Ora, nenhum indivíduo,
instituída a opressão, subtrai-se ao seu contágio. Nenhum indivíduo e comportamento algum.
O Chrysler negro e a viatura do Exército seguem o carro mortuário através dos pequenos quarteirões do Jaçanã, com crianças descendo as ruas
ladeirosas sentadas em carrinhos primitivos, a estridência das rodas de metal no asfalto coberto com um lençol fino de areia, outras brincando sobre montes de
barro em terrenos baldios, velhas roupas secando ao sol de outubro ou de novembro, muros guarnecidos com arame farpado, pequenas automecânicas graxentas,
escuros botequins, o quadro-negro à porta anunciando pratos populares em letras de alvaiade, calhambeques transportando mudanças - trastes desconjuntados,
trouxas, eletrodomésticos e gaiolas de pássaros -, centros espíritas, canta um canário no silêncio e certas ruas permitem uma visão fugaz: montanhas longínquas
entre tetos baixos e postes de cimento. Seguem os três veículos em direção ao Centro, através das numerosas e bem marcadas cintas que tanto graduam o
traçado quanto a vida da cidade, abandonada, pobre e em tudo semelhante, nesta zona - por trás da qual se estende ainda, seu contraste, o anel das favelas e
das fábricas, ladeadas por montes de ferro velho e lixo -, a um povoado de fronteira, com burros arrastando carroças sobre elevações argilosas, entre casas
rasteiras e desolados jardins onde medram pés de abóboras. Avançam, cinta após cinta, as ruas tornam-se menos tortuosas, escuras portas de suspensão em
aço ondulado substituem as portas de madeira dos armarinhos, multiplicam-se - rede emaranhada e negra - os fios da energia elétrica, com raros pássaros
assustados e raras armações de papagaios trazidos pelos ventos de agosto, caminhões e ônibus sobem nos passeios meio esburacados, rodam sobre o mosaico
tisnado dos quartos e até as xícaras, os retratos nos álbuns e os sonhos, os que ainda subsistem, são impregnados de fuligem. Frontispícios menos fumacentos,
açougues mais arejados, alguns cartazes de rua (Boas Festas!), a multiplicação de veículos ligeiros, de sinais de tráfego e certa ostentação nos mostruários das
lojas de tecido indicam um novo círculo, mais opulento, dos muitos que gradualmente se sucedem, contíguos a outros círculos e deles separados. Até que as
estruturas dos palácios por vezes decaídos e mesmo assim orgulhosos que governam a cidade, entrevistos de certos pontos do percurso entre árvores outonais e
sem nenhum esplendor, alteiam-se de súbito, crivadas de janelas, coroadas de antenas e de luminosos desmedidos, com suas caixas-fortes, seus computadores,
seus guichês sonoros, seus elevadores lotados e a rede que os laça e une, as vozes incansáveis das telefonistas. A carcaça negra de Natividade, sempre mais
pesada, trespassa devagar esse mundo vário e indiferente, alheia ao traçado das ruas e avenidas, seguida pelo Chrysler e pelos poucos soldados distraídos, rumo
ao jazigo perpétuo da família junto à qual envelhece servindo, rumor de bilros e de louça, cheiro de mostarda e de amoníaco, seu velho corpo e este anacrônico
cruzeiro entre o asilo e o jazigo, enfim morta, enfim aceita, o silêncio, a inércia e a podridão do seu corpo encantando os lugares onde irrompe. Indispensáveis, à
mestra rendeira - para que nasçam dos seus dedos, na almofada, as malhas e desenhos rituais das rendas -, espírito inventivo, gosto, conhecimento dos pontos e
juízo seguro sobre o valor dos efeitos.
© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.
Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333
|