UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Alguém, sustendo ainda no ar, em uma ou outra janela, o vidro enfumaçado com que segue o eclipse, olha-nos passar, mãos enlaçadas, espectros ociosos sob o meio-dia tíbio. O sol, lunar, banha-os frontões das casas e os vidros emitem reflexos pálidos. Nossos passos realçam o silêncio nas ruas pouco transitadas. Ouvimos o ruflo das asas quando os pássaros desorientados levantam vôo e vozes de mulher atravessam quarteirões, alcançam-nos, claras como se atiradas de trás das persianas. As lojas fechadas e as aulas suspensas. Cinqüenta mil pessoas, mantidas à distância dos foguetes pelos cordões de segurança e suas automáticas, comprimem-se na Praia do Cassino, muitas desde a véspera, tendo passado a noite de Verão na areia, nos carros ou em tendas. Vistosas e inúmeras bandeiras, trazidas para que os escolares acaso extraviados se orientem, flutuam sobre o acampamento. Cornetas, campainhas, gaitas, assovios, garrafas quebradas, gritos, cascas de frutas jogadas à distância, batuques, vozes, um hino marcial. Percorre as cinqüenta mil pessoas um silêncio, uma vaga de silêncio como um rumor - e os mastros das alegres bandeiras aquietam-se: prepara-se o tiro do Nike-Apache, último foguete a ser lançado antes que o eclipse alcance o apogeu.

No céu límpido - não um céu noturno, mas um céu tumultuado, onde noite e dia coincidem -, no anel do horizonte, brilham constelações desconhecidas, tanto sobre os tetos das casas como do lado do mar. Na calmaria, o som das águas se espraia, passa sem fazer sombra um bando de pássaros, uma onda cor de breu ondula com mais ímpeto ao longe, cintilante, o refluxo cumpriu-se e a preamar da tarde se anuncia forte. Algumas bandeiras ainda pulsam, as cores demudadas e envoltas desde o extremo do mastro numa espécie de névoa, um reflexo tenso e sufocado.

Parte o Nike-Apache com seu rabo de chamas, sobe, invisível, entre as cortinas grossas de fumaça e areia, cem locomotivas de vento e de fornalhas atroam soltas no ar, todas as bandeiras despertam num golpe, estalam tesas sopradas pelo tiro como se fossem despregar-se dos mastros, copos de plásticos, pedaços de papel e folhas secas voam, voam os toldos dos quiosques de frutas, estala o madeirame dos tetos e os pássaros fogem atordoados das árvores que esse vento zurze. Cheira, o vento, a lacre fervendo. Sobrevoa-nos, baixa, uma nuvem de aves, os bicos mudos: parecem voar com raiva. Ecoa na praça, apagado, o brado das cinqüenta mil bocas na Praia do Cassino e eu mostro a no céu cada vez mais profundo e estrelado o Nike-Apache - um traço, diamante e fogo.

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