UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » Representação dos oprimidos [T17]

Estremecem as paredes do chalé com uma alegria diferente da que o Tesoureiro, ainda confiante, anima e preside. As pastoras, vibrando os pandeirinhos enfeitados com fitas coloridas, cantam na sala. Seus pés e o grande laço vermelho e azul nos cabelos da Diana marcam o ritmo do canto. Modesto Canabarro, a barba branca, ginga à frente da orquestra que vem pelo alpendre. Dirige-se a Gorda para Cecília, beija-a no rosto, chorando de alegria e faz questão de tomar a sua mala. O gataco corre nos seus peitos, salta para o meu ombro, passa para os ombros de Cecília, acompanha-nos, sobe outra vez pelas ancas da Gorda. Os pobres e encardidos homens da orquestra DEIXA FALAR, descalços, entram conosco. O cheiro de suor mescla-se ao perfume das laranjas maduras e dos lírios. Ecoam, ensurdecedores, nas salas e quartos da casa, os instrumentos e as quatorze vozes agudas das meninas. Irrompe o carneiro entre seus vestidos longos. O gataco precipita-se dos cabelos da Gorda e corre para Modesto Francisco das Chagas Canabarro. Eis-nos: o Velho com os joelhos dobrados, a cauda do fraque voltada para um lado e o gataco dentro da cartola, os músicos sustentando o trombone, o bombo, o clarinete, o pistão, o bombardino, as dançarinas estáticas, mãos a ponto de ferir os pandeiros, a Gorda conduzindo a exígua bagagem de Cecília, Cecília entre os músicos, de costas, porém com o rosto voltado para mim, rindo sobre o ombro e eu meio curvado, como quem fosse prender o carneiro nos braços.

Passeios à noite, a Lua pascal e a Lua de maio brilham e morrem sobre as ruas ladeirosas de Olinda, com rapazes e moças sentados nas calçadas, Alto da Sé, a visão do Recife iluminado, Cecília aperta a minha mão e ri. (Sobem os leões nos telhados, movendo as caudas.) Jarros com flores, arranjados pela Gorda, aparecem no quarto. Entes, do corpo de Cecília, deslizam para o meu quando estamos abraçados. Pessoas a quem ela houvesse conhecido, lembranças, das quais falasse e que assim, aos poucos, me povoassem, sorrateiras, na escuridão.

Forma-se, com o embrião no ventre de Cecília, outro embrião de gestação mais curta, um embrião que nos envolve, que nos faz luminosos, mais leves, ferozes, desdenhosos, maiores e sua plenitude tem de coincidir com o minuto preciso do desfecho. Como se chama? Aleluia? Glória? Exultação? Tem nome?

Os sonos, fundos, lembram vigílias festivas. Circula o sangue nas veias com um rumor de cascavéis. Respiramos? Enchem-se os pulmões de madressilvas, de vidrilhos e de penas de pavão. O chão onde pisamos nos é familiar.

A areia da praia, o mar calmo e as palmeiras imóveis refletem o céu vermelho. Pela primeira vez no ano, Sol e Lua, ainda oculto o Sol e nova a Lua, passeiam juntos, em seus cursos separados, sobre o campo dúplice de Gêmeos.

Vamos abraçados, ao longo da praia, ela num vestido de algodão um pouco desbotado, onde restam as folhas verde-pálido: o uso, uma espécie de outono, cresta as flores amarelas. Já percebo, em Cecília, uma alteração entre o ventre e os seios altos, e as marcas dos seus pés as primeiras do dia, com as do cordeiro e as minhas - na areia sangüínea e cheirando a sargaço vão um pouco mais fundo. O espoucar da espuma. Um dorso de animal, extenso, também avermelhado e espelhando a luz do amanhecer, avança lentamente, corta as águas. Pássaros vêm de longe e pousam sobre ele. Às vagas mais fortes, eu e Cecília corremos, rindo, fingindo recear que nos alcancem e molhem os tornozelos. Salta o cordeiro balando e as marias-farinha, translúcidas, fogem entre os nossos pés, escondem-se. O rosto sorridente de Cecília, com os vergões do travesseiro e ainda cheirando a macela-do-campo. Nada comemos; nem lavamos as bocas. Sua língua sabe a despertar, a jejum, a pão ázimo - e o ar salgado, leve, insinuase entre os nossos dentes. Digo a Cecília, agora, o que ela me confia uma noite de chuva, ao lado do canal. Morrer, neste momento, não me seria difícil e não teria importância. Cecília, pródiga, permite-me gozar, em poucas semanas, sem medida e sem pausa, a plenitude que o homem só recebe em parcelas e, mesmo quando pouco castigado, diluída ao longo da existência. Dispensa-me com parcialidade os bens a seu alcance, fazendo-me beneficiário tão-só da parte venturosa e favorável de anos (de quantos?), e põe-me a salvo da outra, da negativa. Poupa-me os podres, os escuros, os amargos, os ásperos, os áridos.

Sim, o embrião que a ambos nos envolve está maduro e eu sigo ao lado de Cecília na certeza de que somos mais fortes do que tudo, protegidos - pelo amor, pelo júbilo contra toda espécie de engano, imprevisto, emboscada, armadilha, queda (tão errado lemos, instruídos que somos com letras enganosas).

À minha espádua, ouço uma voz que me chama, desconhecida. Volto-me: meu pai, pela única vez, dirige-me a palavra. Sorrio para ele, que guarda distância, tímido. Continuo o passeio. Ouço, de permeio com o rumor das ondas, o bater surdo e ainda distante, mas não muito, das patas do cavalo. O cavalo aproxima-se a passo e o cocheiro parece não ter pressa. As rodas vão desenhando na areia, lentas, dois sulcos paralelos. Habitantes de Cecília agora nos rodeiam, felizes e um pouco assustados. Eu estranho a ausência do carneiro, o cabriolé está perto, tornam-se mais espaçados os passos do cavalo. Cecília vê primeiro: "Olhe, Abel, o cavalo vem só, puxando o cabriolé". Neste momento, a quinze ou vinte metros de nós, o animal se detém.

Aqui, ao lado de Cecília, à luz do dia que começa, inebriado, cumulado de bens, convicto da nossa imunidade e desdenhoso da Morte, do seu raivoso poder anulador, como pressentir, neste veículo sem guia, a presença da Mulher com um lado do rosto esvaziado? Tomo Cecília pela mão, ajudo-a a subir e novo, eu próprio, as rédeas. O cavalo ergue a cabeça e nos conduz para o fim.

Cecília, no seu vestido de algodão, sorri sob o chapéu de palha, os pés manchados de areia. Vai Cecília a meu lado, e seu corpo, essa memória, vibra. O cavalo segue, dócil, há pintas de sol no rosto de Cecília, ela segura meu braço e olha para tudo, para o céu azul, para o mar de cobre, para os peixes que perpassam na transparência das ondas, para as ancas do cavalo, para a sombra nossa na areia, ri e beija-me, o rosto fulgurante e todo o corpo inundado por uma alegria que jamais externou de um modo tão pleno e evidente. Reveste-a uma fulguração que me cega e até as folhas do estampado, as flores amarelas, parecem recuperar a nitidez e a cor primitivas. Cecília esplende mais que este amanhecer de maio. Vamos pela praia dos Milagres e as rodas do cabriolé encontram a cada volta pedaços de paredes meio enterrados na areia, restos de portas ou de vigas, lajes quebradas, ferragens. As grandes pedras amontoadas ao longo da costa para deter o martelar constante e cada vez mais mordente das ondas vão sendo vencidas pelas águas. Mas as águas são verdes sob a manhã e o céu azul já não entra pelas janelas dessas moradias destruídas: inunda, com a sua luz, os cubos antes formados pelas paredes em pó. Descemos do cabriolé. Andamos sobre as pedras, dedos enlaçados, entre os restos de salas e de quartos (onde muitos casais certamente se amaram e semelhantes àquele onde a Gorda nos hospeda, com seus odores de frutas e um leão à janela), vagamente atingidos por essa advertência das coisas. De súbito, a um só movimento, assaltados pela noção exaltante da nossa existência e dos dons que trazemos, voltamo-nos um para o outro e abraçamo-nos. O rosto de Cecília arde e também os seus olhos ligeiramente oblíquos. Subimos novamente no cabriolé. A mão que vai tomar as rédeas do animal e fazê-lo recuar em direção ao aclive de pedras, postas à ribamar para deter as águas, é a mesma - pérfida e desta vez mais ativa - que segura no fundo da cisterna a rede. O cavalo recua. Tento instigá-lo a avançar, ele recua ainda, devagar. Cecília assusta-se, o cavalo, sempre andando para trás, empurra o carro em direção à armadilha, ao precipício, e de súbito não pode mais com o peso. A roda esquerda perde o apoio, arrasta-nos, suga-nos, é tudo violento, rápido e tumultuoso, grito para Cecília, meu corpo salta e insere-se entre pedras. Ouço o rolar, sobre mim, do carro e do cavalo, um trovão duro, frio, rodeado de dentes e de garras de aço, um ser redondo, ventoso, feito cem leões e tão luminoso que me acende por dentro, batendo no chão, nas pedras molhadas, longamente, crestando-as, lanhando-me as costas, onde está Cecília? O cavalo, preso nos varais do carro, luta para levantar-se. Cecília, imóvel, uma das pernas presa sob o pescoço torcido do animal. As ondas alcançam-na e também molham o cavalo. Grito, em vão, o nome de Cecília e desço as pedras. Ninguém a quem pedir ajuda. Cecília, lívida, ferida, sangue no nariz e na boca, olhos abertos, o vestido em pedaços. Impossível tirá-la de sob o cavalo, que continua lutando, as veias do pescoço encordoadas.

Afrouxo os arreios, ele soergue o corpo e eu carrego Cecília, inerte, para cima, sob a luz do Sol mais alto, deito-a sobre a areia. Os olhos tão luminosos, abertos, baços, sem nada refletir.

Movimento algum. Respira? Um salto de peixe. Necessário salvá-la, salvá-la para mim e para outras manhãs iguais a esta. Olho em redor. Ninguém, ainda. O vento tange para longe o chapéu. Tomo entre as mãos o seu rosto, os olhos sempre abertos, indiferentes à luz.

Chamo-a ainda uma vez, mas este chamado já é pobre de convicção, embora eu não queira, não possa admitir que Cecília, macho-fêmea, força e compaixão, doadora e beneficiária, Cecília, esteja morta.

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