UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela
leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado.
As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas
em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos
a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.
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Você está em Leitura por rotas » Representação dos oprimidos [T16]
Nua e apenas mantendo, no braço, sua pulseira com astros de ouro e moedas, Cecília aproxima-se da cama. Ajoelha-se, o pênis enristado pousando entre as coxas e como que suspensos os grandes peitos redondos. A luz que atravessa, na cortina, a lua e o leão, desvendam-se novas figuras do seu ser cambiante e povoado. Seria este a memória — a minha e a sua, fundidas? Não. Será, quando muito, uma metáfora imperfeita e viva da Memória.
Tivessem os habitantes deste corpo o caráter de imagens, de representações, limitar-se-iam a repetir palavras e ações de outro tempo, submissos a uma realidade outra, exterior a eles e já ultrapassada. A autonomia de tão surpreendentes criaturas, ao contrário, é ampla. Assemelham-se aos entes da memória em não estarem, no corpo de Cecília, sempre visíveis, presentes sempre, como indivíduos encerrados num salão. Surgem, sucedem-se, apagam-se, obsecam; e o espaço que ocupam, se ocupam, é imaterial, não um espaço físico.
Supor que Cecília, no espírito e na carne, altera-se quando outros corpos abandonam a doce curvatura dos seus ombros, dos seus peitos ou dos seus quadris - e que agem fora desses limites -, seria errôneo. Aos homens nascidos de mulher, identificam-se tais corpos, opostos as abstratas personagens das recordações, em dois pontos básicos: agem em função dos seus próprios impulsos e resoluções; ocupam, em grau variável (entendido que a sua existência é verdadeira, e de modo algum imaginária), um espaço físico, não imaterial. Quando, contudo, deixam ou invadem os limites sensíveis do corpo de Cecília, não o diminuem ou acrescentam verdadeiramente.
Cecília, na colcha de rendas, joelhos meio afastados, mãos acima da cabeça segurando as grades de latão, espera. O rosto pálido e tenso, pálpebras cerradas, a respiração fora de compasso. Homens e mulheres, ociosos ou entregues a afazeres rústicos, inclusive os lavradores que com ela irrompem no chalé (plantam e capinam na came de Cecília, sem que chegue a mim o rumor dessas tarefas), movem-se no seu corpo.
São, seu corpo e esses corpos, sobre a colcha de rendas e a toalha vermelha, de uma vez, corpos e espaço circundante, são corpos e também atmosfera — uma atmosfera aprazível, umbrosa e repassada de odores frutais. Beijo seus côncavos: entre peitos, garganta, umbigo, cintura, sobraço. Com a língua (crianças brincam nas coxas cada vez mais afastadas), sopro seu pênis ereto e nem assim viríl, embebido na feminilidade que a envolve. Chamam-me, na sua boca, duas vozes simultâneas? Duas vozes, grave uma e outra aguda, gemem: “Vem!” Com extremo cuidado, trespasso-a, da cabeça aos pés ela estremece, eu estremeço e por três vezes, sentindo no dorso, insofridas, as unhas de Cecília, sou admitido ao mundo do seu corpo - onde três vezes, com diverso grau de intensidade, eu a encontro. Que sabe, da queda, um homem, no instante em que perde o equilíbrio e tomba? Ele sofre o acidente e a sua experiência é um gênero vertiginoso de conhecimento. Assim minhas passagens no cerne de Cecília. Perfuro o mundo do qual tantos viventes irrompem e que nada abre, nada, à introdução do meu corpo. Agora, rompo-o, atravesso-o e tão limitadas estas admissões, tão velozes em sua nitidez, que ingresso e expulsão parecem simultâneos.
Pequenos animais, leves como palavras, voam em torno de mim e de Cecília ou passeiam em nossos corpos: aranhos, grilas, formigos, efeméridos, vespos, vagaluzes, cantáridos, escorpiãs, cigarras. Trilam as grilas, noturnas; as cigarras zunem. Cecília range os dentes e atira a cabeça para trás. Este movimento corresponde à segunda incursão na sua substância. Ela, vestido leve e claro, corre a minha frente, feliz, a mão esquerda estendida para mim.
Incorporam-se na minha última visão, ao mundo orgânico, arcos e colunas? Vejo-os, realmente, enquanto uma voz de menino, as nossas costas, narra o casamento, imperiosa? A figura do Bispo, imponente, erguendo as mãos como se fosse declarar-nos unidos (rosto de mulher) sugere um espaço solene e amplo. Existam esses grupos de crianças entregues a seus jogos infantis e esses jarros com flores. Os braços abertos do Bispo realçam os paramentos suntuosos. Cecília e eu, ajoelhados, somos um. Seus, no corpo que formamos, perna e braço esquerdos; meus o braço direito, a perna direita; duas as nossas cabeças; subsiste um seio, o esquerdo, em nosso busto. A mão direita segura a mão esquerda. Voltam-se nossas cabeças, fronte contra fronte. Nosso corpo, favos rompidos de mel, exala o gozo carnal. Esplendor? A pele: chama latejante. Gritamos e tombamos. Um hausto, duas gargantas, grito uno. Ouço o barulho do mar e vejo as grades da cama, as palmas do coqueiro, o leão rampante. Nuvens sangüíneas e longas, com reverberações de ouro, iluminam o corpo brilhante de Cecília: braços para o alto, o pênis ainda pulsando. Sobre a esteira, deitado, o carneiro rumina folhas de canela. Cecília volta-se e abraça-me outra vez. Tilintam as moedas e astros no seu pulso.
Breve estação de um amor sem perguntas e indiferente a toda espécie de projetos. Andamos pelos quartos e salas do chalé, sempre nus ou ataviados com os velhos colares e chapéus que achamos nas gavetas. Cecília, o bandolim de Leonor no peito, sob as réstias que atravessam as bandeiras coloridas das janelas, a cabeça e o corpo manchados de vermelho, de azul, de verde, arranca notas soltas do instrumento. Subsistirá ou não, dentro do mundo, o oposto do mundo? O universo: também um andrógino? Questões logo esquecidas.
Ecoam, com seus dias cálidos e súbitos crepúsculos, os meses desse verão inebriante, como teclas de um órgão calcadas sucessivamente e cujos sons se fundissem. Na carne de Cecília, comparável a memória e a imaginação, espaço franqueado ao meu testemunho apaixonado e onde se tornasse sensível a operação daquelas faculdades gêmeas, ocorre um fenômeno novo. Surgem, na sua carne multiplicável e da qual, na hora em que pela primeira vez nos amamos, e só então, invado o núcleo (invasões ou admissões que duram o tempo de um disparo), surgem e desaparecem com a mesma rapidez, em meio aos outros homens e mulheres, seres de outra espécie, cheios de força e como iluminados de dentro. Não posso vê-los bem, tão depressa se esbatem. Despidos, vestem-nos apenas os anéis com pedras preciosas e os chapéus em forma de chaveiros, mas sente-se que estão armados e seu olhar tem um peso de aço. Trazem, na testa, números negros ou brancos. Com semanas de intervalo, desperta-me no âmago da noite o impulso de buscar. Buscar? Mas onde? O quê? Pronuncio, como um esconjuro, o nome de Cecília e outra vez adormeço. A graça de vê-la e o meu desejo sem fundo tudo absorvem e apagam. Zumbem as coisas - portas, móveis, piso de mosaico, ar -, golpeadas pela sua presença. Quando, ao fim da tarde, beija-me no alpendre e parte (e quantas vezes, ao voltar-se no portão, corre, sobe os degraus, beija-me ainda?), rangem as paredes da casa. O vácuo e o silêncio atingem cada osso. Acendo dois rojões, que explodem e lançam no céu quase noturno luzes de estrôncio e magnésio. Minha mãe traduz, na praia: “Pode voltar”. Mas o que escrevo ou pronuncio, com estas explosões e riscos luminosos, lançados tão alto, é o nome de Cecília. Deito-me na cama em desalinho, impregnada de todas as suas presenças e das suas palavras amorosas. A Gorda: “Epa. Tomei sol e vento que já estou ourada. Vocês se acabam. Ela é boa assim de cama, Abel? Conta pra mim. E eu pensando que ela era meio homem!" Cada vez é mais imperioso ouvir tombarem os vestidos de Cecília na esteira do quarto, enquanto o vento move os ramos do flamboyant; e repetir, sob formas sempre novas, vigiados pelo leão rampante, nosso prazer tríplice. Sugere-me uma tarde, meu rosto no seu ombro e uma perna sobre a minha: “E se nós nos matássemos, Abel?” O rumor do mar dissipa-se no quarto. “Seria perfeito, não acha? Ascensão e explosão. Um fim luminoso”. Da porta, observa-me, sob o chapéu descaído, com seu olhar ardente, o homem desquieto e que inocula nos demais a sua febre. Levanto-me e procuro o revólver em cima do guarda-roupa. Vazia a caixa de sapatos: nem sombra da arma e das balas. No corpo de Cecília, estendida a meu lado, um casal (não os vejo) fala descuidado a respeito da mesa sobre a qual presumo estarem.
Sobre os meus joelhos, nua, na cadeira de balanço, tendo a cabeça um grande chapéu branco, com plumas, Cecília conta-me a fábula concebida na fome e na loucura por uma das internadas: “Há, em algum ponto do mundo, um ovo cujas dimensões é impossível calcular e onde Deus guarda um grão de claridade. Isto para o caso de todos os fogos do universo vierem a apagar-se. Então, com um grito, Deus romperá o ovo e dele sairá voando um pássaro feito de chispas, que crescerá rapidamente, com a velocidade da luz. Mas pode suceder que o mundo recaia ainda nas trevas. Prevendo isto, traz o pássaro um ovo, onde Deus esconde a claridade”. Tomo-a nos braços e levo-a pelas salas, afirmando que ela é esse pássaro. Esconde os pés, com receio de bater nos móveis e portais. Cai no chão o chapéu branco e emplumado. Vejo, então, as criaturas sem nome e de olhar insuportável, com seus números na fronte.
Última segunda-feira de março, entardecer, nuvens sangüíneas no lado oposto ao mar. Cecília e eu sentados sobre as pedras, na Praia dos Milagres. Vazante. As carnes da cintura pressionam o cós da saia verde e os mamilos esticam a blusa negra. Cecília toma-a, séria.
As sandálias claras de Cecília, com leves manchas de uso nas palmilhas. Nossos dedos se entrelaçam. O calor da sua pele e o sangue martelando o pulso fino, fazendo vibrarem as argolinhas de prata e as pecinhas de ouro.
- Abel, eu estou grávida.
Olha-me, fixa, ligeiramente pálida, os joelhos a um tempo ossudos e harmoniosos — e o busto voltado para mim, lançado para mim, rodeado pelo espaço da tarde, enquanto morre o dia, os lavradores acompanham a carreta mortuária e o cão brinca agilmente com as ondas cada vez mais afastadas.
- Tenho um filho seu em mim.
mas o perfume que domina todos os demais é o de Cecília. Colônia, sabonete e pó, mesclados a fragrância que exalam o ventre e as coxas: de sexo banhado em muitas águas e agitado, úmido, desperto. Impregnada, decerto, desse múltiplo odor a saia verde. Os dois desconhecidos passam por nós, afastam-se. Inclino-me e descanso o rosto no ventre ainda brando de Cecília. Todos os cheiros invadem-me, intensos. Cecília desaparece: uma semana sem vê-la. Evita-me? Por quê? Teme ouvir de mim o que os irmãos exigem e determinam que eu diga? Prepara decisões sem discutir comigo? Ordeno a Cara de Calo que a encontre custe o que custar. Volta sem dar conta do recado, com alegações confusas sobre a cintura zodiacal, o movimento direto de Urano e a força do seu Legislador, que o opõe a função de mensageiro. As linhas quase sempre ocupadas dificultam minhas tentativas de obter ligação, tanto para a Rosa e Silva como para o Serviço Social. Quando consigo falar, outros respondem. Deixo recados ou reponho o fone com uma praga surda.
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