UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela
leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado.
As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas
em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos
a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.
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Você está em Leitura por rotas » Representação dos oprimidos [T13]
Praça do Entroncamento: bancos de pedra sob as mangueiras e através da folhagem o luar no rosto de Cecília. Tudo altera esse rosto, sensível como água dormente e onde a cada instante descubro aspectos novos. Engano-me se creio que todas as coisas móveis e imóveis nele se refletem, transtornadas?
O duplo e ainda não decifrado ser de Cecília estremece em meus braços como se percutido nas profundezas da sua substância. A impressão é tão nítida que eu a estreito com mais força, buscando evitar que se desgarre de si mesma.
— Seria isto, Cecília o que me faltava? Um amor amplo como o que eu tenho por você e que em tudo imprime a sua marca?
Seus olhos ficam um pouco mais oblíquos, mais baços — como se não me vissem — e ao mesrno tempo cintilam com maior intensidade. Creio ver, dentro dos olhos de fêmea, outros dois olhos. Viris? O que eu procuro não é ela e nela não está. (A voz rouca e o travo de melancolia). Ela, Cecília, pode quando muito ser uma parte do percurso que me conduzirá ao termo da procura. Do mesmo modo que, tendo-se vinte anos, precisa-se viver ainda alguns para chegar afinal aos vinte e cinco. Também pode ser que o termo da minha busca seja tão-só o início de uma busca mais precisa e ampla. Um véu brilhante, de trevas, perpassa novamente nos seus olhos. Há, neles, qualquer coisa, sim. Não de viril, talvez. Ela me fixa como o domador o cerne dos leões, antes de abrir a porta de grades.
- A senhora viu claro: tem bom olho. Mas podia ver tudo? Eu vejo mais. Em Cecília, conciliam-se contrários. Solidão e multidão. Delicadeza e força. Doar e receber. Direito e avesso. Enfim: íntegra. Considero-me, ante ela, um ser desfalcado. Presentes, em mim, a imagem e o encanto de Cecília. Assim: texto que se sabe de cor, que se é capaz de abranger com a mente — um todo — e de repetir, palavra por palavra. Enquanto, porém, olho as figuras (a janela do ônibus aberta e o vento seco do meio-dia batendo no meu rosto), Cecília, texto familiar, é uma aquisição adormecida — presente e discreta, calada. Infla-se o meu peito contra o vento como a vela do relevo, enfuna-o a rapidez — e de repente, colhida no ar, na velocidade, ocupa-o sem nele caber, feita de vento e de aceleração, a imagem de Cecília. Esta presença e o nome, o seu, que se forma na garganta, um laço, coincidem. Não o pronuncio e o laço me sufoca. Súbito, desata-se, desata-se o nome, um corte na garganta, o nome se pronuncia, banha-me o peito, rubro, um leque. Brilhante e rubro. Uma pulsação — e apaga-se, o leque. O ônibus retorna a marcha anterior. A presença de Cecília, egressa do fundo onde as coisas dormem, não é mais um texto sabido e não lembrado: acompanha-me, nítida. Aguardo a vinda de Cecília. Os irmãos ameaçam agredir-me e ela sugere encontrá-la neste lugar deserto. As águas cheiram mal? São, mesmo assim, outras águas.
Cecília, eu e Cecília, sentados no chão, não longe do cavalo, entre os arbustos retorcidos e de caule espinhento, a cabeça de um recostada no joelho soerguido do outro. Vemos, mas elas não nos vêem, as pessoas que perlongam o canal utilizando a muralha de cimento. Ela contesta a razão de ser de expressões minhas e faz-me ver quanta coragem há em atingir-se certa espécie de resignação. Devo aceitar o meu estado de banido do Éden. Não inauguramos, eu e ela, um mundo. Mundo algum. Nenhum. Não estamos separados ou isentos do mal. O mal, quinhão e herança, faz parte de nós. Ao contrário, porém, dos afortunados solitários do Éden, estamos longe de ser protagonistas de alguma fábula de queda e expulsão: nascemos expulsos e caídos. Temos, com isto, a alternativa de aceitar a condição de degradados e realizar, em ações densas de generosidade e de cólera, a nostalgia do Jardim. Por outro lado, as onças hoje só lambem a própria pele. Mas o turbulento globo que habitamos é povoado de homens.
Deitados sobre as folhas, lado a lado, somos conduzidos através das estrelas pela Terra. Estamos de mãos dadas, em silêncio e a presença de Cecília amplia-se, levanta-se, vem sobre mim, uma vaga, envolvendo-me, vaga vagarosa, como se contemplada de uma elevação. O cavalo, mais perto, agita a cauda e as clinas desbotadas. Seus cascos entre as plantas, cautos. Cecília volta-se e descansa a cabeça no meu ombro. O hálito aquecendo a minha pele, diz que me ama, dez, doze vezes, em voz baixa, como se as pessoas ao longe pudessem ouvi-la ou como se as palavras que repete, enunciadas com força, perdessem o seu caráter íntimo e secreto. Habitantes de Cecília, liberados, passam a distância ou atravessam-me. Um, dentre ele, vem e vem, desquieto, em alpercatas, a aba do panamá caída sobre a testa, escondendo o fulgor ardente e vítreo dos olhos. Sua passagem é igual a um vento forte: todos se curvam um pouco e inclinam a cabeça. As cobras se aproximam. O cavalo parece feito de luar.
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