UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Admite: talvez fosse possível entrever a vida do Tesousoureiro no fim. Pode-se marcar no relógio o momento em que um galo de briga, batendo-se com outro, começa a entregar-se. Isso tem uma causa: os esporões, o bico e a fúria do adversário. O Tesoureiro é massacrado e até a inclinação dele pelas festas decerto vem do mundo. Já era ou podia ser — ou não? — a desfiguração de uma força. Quando você vê ou diz ver, como no caso dele — e em outros —, a capitulação como um simples ato auxiliar, presta serviço a quem? Deixa ao abrigo de acusação a pane cruel do mundo. Essa parte, Cecília não consegue nomeá-la e tem dificuldade em identificá-la com clareza. Podemos, contudo, negar que existe? Não é ela que conduz Marilyn Monroe ao suicídio?

desguarnecida, enrijece o corpo e não parece medir a diferença de forças, agora inconteste: quatro vultos nos espreitam, o espessor da ameaça enegrecendo-os. Volteia o busto, calada, cisca a areia com os dedos. Acha o que procura? Uma pedra? A mão fechada. Três dos estranhos mantém-se um pouco afastados, todos de cabeça descoberta; o outro, de capacete, segura um bastão. Polícia? Este se dirige para o lugar onde estamos. Pode fazê-lo sem pressa: seus três comparsas barram nossa fuga eventual. O de capacete: “Que estão fazendo aí?” Um dos três solta uma risada fina e sôfrega. Sem dar resposta, levanto-me; ajudo Cecília a levantar-se. O carneiro desapareceu. “São surdos? São surdos?” Cecília pôs a bolsa a tiracolo e tem nas mãos os sapatos. Os três paisanos fecham mais o quadrado, enquanto o outro nos ordena mostrar os documentos. Documentos? Intimação expressa numa língua morta ou ainda larvar. A presença dos intrusos, esta me parece clara. Assume um drástico sentido de expulsão, nada casual. Seguro a mão de Cecília e tomo a decisão de afastar-me como se os quatro indivíduos não existissem. Mas o de capacete atravessa a ponta da botina entre os tornozelos e empurra-me. Caio com a boca na areia e antes que inicie um gesto fazem-me rolar com pontapés a altura dos rins. Passa entre as estrelas, curva, a cauda do farol. Meu espancador, capacete na mão, atinge-me com os pés a cada tentativa de erguer-me e Cecília defende-se dos outros. Espanta-me a rapidez com que esquiva os golpes dos agressores e a obstinação com que se conserva em silêncio, não admitindo um só grito de socorro. Consigo, no chão, agarrar a perna do soldado e fazê-lo cair. Precipito-me, de braços abertos, entre os que maltratam Cecília. Um deles segura-me e prende-me o fôlego. Mão dura, larga. Mordo-a, ouço um urro abafado. Curto golpe a altura da nuca me derruba. Tento levantar-me. Tudo que consigo é rolar sobre um ombro e entrever o corpo de Cecília, perdido o equilíbrio, ceder com lentidão e baquear, lento, mais uma vez estapeado. Ouço um lamento, um grito, um chamado, lançado cada um por uma voz diferente — e as estrelas ampliam-se, lagos ofuscantes. Os passos dos ofensores afastam-se depressa. O tropel. A praia estremecendo sob a carga desses passos na areia, como se percorrida por um bando de rinocerontes. Cerro as mãos, tentando manter-me, por este meio, na superfície da minha consciência. Houvesse, em minhas palmas, um fio, uma corda capaz de arrebatar-me a esta cova profunda sobre a qual flutuo! Os lagos das estrelas crescem e diminuem. Sobrevém um esmorecimento, uma paz dissimulada, a doçura de morrer ou de cortar as ligações. Um mel. Um nada. Abel! Meu nome bate a porta das trevas (quantas vezes?) e impede que me renda. Aos poucos, movo-me. Cecília está sentada, com as mãos sobre o sexo e as pernas estendidas, unidas, na exata posição em que as mendigas, sem força para andar, pedem esmolas nas calçadas. As feridas sangram e ela treme. De dor? Seus dentes batem sobre o meu nome. Talvez de frio, o corpo desabrigado, exposto a brisa praiana. Não consigo despir minha camisa em pedaços. Molho a anágua rota de Cecília, tento lavar seu corpo, os cortes, procurando fazer leves as mãos embotadas.

Nós, num táxi de molas ruidosas e já áspero o couro das poltronas, dando voltas indecisas entre as ruas do Progresso, da Soledade, das Ninfas, Conde da Boa Vista e Padre Inglês. O motorista, apreensivo, olha-nos pelo retrovisor. Indaga, afinal, se não queremos que nos leve à Polícia.

O motorista, talvez impaciente e assustado, sugere deixar-nos frente ao Pronto Socorro.

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