UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T14]

Um velho, sem camisa, exposto a chuva morna de novembro, pesca de tarrafa, aproveitando a elevação das águas no canal. O guarda-chuva aberto de Cecilia é o mesrno com que desce do ônibus no dia em que vislumbro, surpreso, a povoada espessura do seu corpo, frente ao Museu do Estado. Vermelho, o tecido parece azul ou cinza, nesta hora da noite e longe das lâmpadas. Grãos de chuva batem na fazenda tensa. Brilham os seus olhos na sombra e me aquece, íntimo, o calor da sua carne, através das roupas que vestimos — um hálito, opondo-se a úmida exalação que transborda do canal. Memória sem lembranças, agora, o rosto de Cecília. Ocultas, silentes, as criaturas que nele se recordam ou imaginam-se. Cada vez mais raras, com a chuva, as pessoas que transitarn nos baldios. O pescador, de pé sobre o muro, atira a rede nas águas. Busca peixes mortos? Pergunta-me Cecília se é mesmo acidental o fim do Tesoureiro. Narro a conversa nos altos do Banco e avanço a idéia de que há suicídios arbitrários. Outros, enquanto isto, não passam de um reforço: o morto colabora com a morte. Entende-se com ela ou participa, em certa medida, do seu próprio fim. No caso do Tesoureiro, se a vida é mesmo um fio, quase nada resta quando o corta. Vê-se isto: o fio desfazendo-se. Tão claro! Alguém, manejando uma lanterna elétrica, traça um caminho sinuoso nas trevas, do outro lado do canal. Cecília, os olhos fixos nessa direção e parecendo crer que o portador da lanterna traz consigo outro objeto, sem nome, a ela destinado, um objeto terrível, sentença lavrada ou arma, põe-se a falar. Talvez, diz-me, eu seja propenso a ver no mundo um cenário onde os destinos — individuais ou coletivos fluem. Engana-se? Ocorre-me, às vezes, que o mundo não seja um elemento inerte? Que seja uma presão, Abel, talvez um personagem? Admite: talvez fosse possível entrever a vida do Tesousoureiro no fim. Pode-se marcar no relógio o momento em que um galo de briga, batendo-se com outro, começa a entregar-se. Isso tem uma causa: os esporões, o bico e a fúria do adversário. O Tesoureiro é massacrado e até a inclinação dele pelas festas decerto vem do mundo. Já era ou podia ser — ou não? — a desfiguração de uma força. Quando você vê ou diz ver, como no caso dele — e em outros —, a capitulação como um simples ato auxiliar, presta serviço a quem? Deixa ao abrigo de acusação a pane cruel do mundo. Essa parte, Cecília não consegue nomeá-la e tem dificuldade em identificá-la com clareza. Podemos, contudo, negar que existe? Não é ela que conduz Marilyn Monroe ao suicídio? Continua falando. Vai emprestar-me alguns estudos que leu sobre a realidade nordestina. As frases enovelam-se, partem-se e de súbito, obedecendo a um nexo sinuoso, afirma: “Com o trabalho que eu tenho, vendo de perto tanto sofrimento, dói nos dentes dizer: Sou feliz. Mas é o que eu sou.” Acrescenta não se poder, além de certa medida, ter e ao mesmo tempo saber: tenho e quanto. Não se sabe. Inviável. (O portador da lanterna sobre a ponte, indeciso a uns cem passos de nós e do silencioso pescador.) Soubéssemos? Estourávamos. Pode, entretanto, por um indício, pode medir ou avaliar quanto a acrescentam estes encontros. Morre-se por tantas razões! Tenho medo da morte, Abel. Tanto! Não quero morrer. Não queria. Agora, a morte não significa mais nada para ela: e este é o indício, a medida da alegria. Leu nos jornais a notícia de um duplo suicídio. Um casal, estudantes, cada um na sua casa. Nada impedia que se unissem e ninguém sabe a razão do suicídio. Ela, porém, sabe. Sabe e também eu não ignoro por que eles morreram. Foi uma rendição? Não. Os dois morreram porque arrebatados a um grau de alegria que incinera as vilezas, as fragilidades, medos como o da morte — e respondem a seu modo as instigações dessa experiência, matam-se, a arder de júlbilo, no núcleo raramente alcançado do fervor. Do fogo. Um amor exaltante como o nosso instiga-os a morrer. Morre-se esmagado e morre-se exaltado. O homem da lanterna, agora acompanhado, havendo atravessado a ponte, explora o lado do canal onde nos encontramos. Ambos de guarda-chuva, saltando cautelosos sobre as poças. O pescador volta a jogar a tarrafa. Colhe-a. Se a morte, no fundo, segurasse a rede, cairia na cilada esse velho paciente, mergulhando e enredando-se nos fios? Cecília, crispada, cinge-me e inclina um pouco o guarda-chuva, numa tentativa de ocultar-nos. Perto, os dois homens. Não falam. A lanterna, como por acaso, oscila e abrange-nos. Um segundo. Eles distanciam-se. - Onde nos encontramos amanhã, Abel? - Onde quiser. - Não aqui. - Onde, então? Sua respiração me queima o rosto. Ela joga a cabeça para trás, morde-me a boca. A impulsividade do seu gesto. Estou de pé e junto a mim há alguém deitado numa cama. A casa onde existimos — eu e o vulto anônimo do sonho — não nos separa do mundo exterior. Assim, vejo inúmeras fogueiras sobre os campos banhados de luar. Um clarão cegante ilumina de súbito a noite e as paredes da casa. A pessoa no leito desconhece a natureza dos relâmpagos: quando soa o trovão, surdo e abafado, curva-se e procura sob a cama a origem do ruído. O trovão, supõe, está no vaso noturno. Mas relâmpago e trovão apenas anunciam o vendaval. Para os répteis, o vento é fenômeno rasteiro; agita o pó, move as árvores, revolve o lixo, não voa muito mais alto que os gafanhotos e os morcegos. No meu sonho, o vento que o relâmpago e o trovão anunciam começa onde em geral acabam as nuvens e não sopra no sentido horizontal, alça-se na vertical, rumo a algum ponto ainda mais longínquo que as grandes alturas onde nasce. Todo o ar da Terra já se move na sua direção, com insetos e pássaros, atraído pela voragem e talvez sigam-no as águas. Será por isto que o mar brame tão forte? São os peixes que clamam, amedrontados. Os fogos, nos campos, tornam-se mais vivos. Sugadas pelo vento, as chamas alongam-se, levitam, voam em direção a esse ímã invisível. O céu povoa-se de lumes ascendentes e esplende com a chuva de fogo às avessas. As labaredas, atingindo certa velocidade e altura, de vermelihas passam a brancas, ofuscam e voam mais rápidas, sempre mais rápidas. A ação do vento, prolongada, acentua-se e pesa sobre mim. Não há mais vulto deitado, nem leito, nem paredes. Tudo, raízes e alicerces, vai ser arrancado do chão como as fogueiras. Ouço então o meu nome, pronunciado com voz cantante e levemente rouca. Volto-me: Cecília está de pé, nua, sob os fogos, com seus cabelos curtos e seu corpo de efebo guarnecido de seios, seguida por uma coorte de leões cujos pelos fulvos refletem ao mesmo tempo a lua e as chamas volantes. Sinto que o ar — e a vida com ele — é sugado de dentro do meu tronco. Descerro os dentes, sai o ar da boca, um vômito, vomito o ar que prendo na boca e onde leio, como traços de sangue, a palavra fogo e o nome de Cecília. Campo e céu apagam-se — e o vento esmaece. Cecília continua de pé a minha frente, o peso do corpo repousando sobre a perna esquerda, dominando os leões, sob o luar. Vagueia entre os potentes e temíveis animais um rumor semelhante ao da ressaca na praia dos Milagres. Sobre o mar quieto, perpassa uma estrela cadente. Nenhum vulto humano em toda a extensão da praia. Cecília deitada, o flanco ligeiramente torcido na minha direção e a bolsa a servir de travesseiro. Seus olhos, iluminados pelos astros distantes (um cavaleiro, a passo, transita no seu corpo, assoviando) e pelas luzes acesas dos navios, fundeados ao largo, fitam-me. O farol percute a noite. O carneiro, deitado, rumina a paz. Cecília estende as duas mãos e atrai minha cabeça, comprime-a sobre os peitos. Crianças fogem e escondem-se, à aproximação do cavaleiro. Abro a boca, aspirando o vento calmo e a voz de Cecília. As pálpebras, cerro-as. Suas palavras, em torno: fala de lutas, mas não sei o que diz. Ouço-a como se lê, perturbando o texto e acrescendo certo mistério à leitura, o trecho impresso fora de lugar. Tocam-me essas palavras não compreendidas. Minha mão avança entre as suas coxas e ela prende-a com um movimento rápido. Seu coração bate forte sob a pressão do meu rosto; os pés estão cruzados; as pernas estendidas; todo o corpo tenso. Começo a beijá-la. No peito, nos ombros, nas mãos. Aos poucos, a rigidez se desfaz. Seus calcanhares, erráticos, riscam a areia. O carneiro, num salto, levanta-se e dá alguns passos, vendo a cabeça. Apuro o ouvido. Um assobio fino e significativo, vindo não sei de onde, atravessa-nos. As ondas quebram, bastante longe de nós. Outro silvo, este mais agudo, responde ao primeiro. Do lado oposto? Sim. Dois novos assovios indicam haver movimentos na sombra, próximos de nós — ou demarcam o cerco. O cerco. Ponho-me de joelhos, olhando para os lados. Ela se ergue. Sua cabeça contra o halo — distante, pacífico — das luzes de Olinda. Talvez ainda possamos escapar. Cecília, recusando a sugestão, segura meu braço, faz com que me volte e beija-me. Vejo um vulto de homem por cima do seu ombro, um vulto impreciso. Aproxima-se aos poucos, com solércia e cautela. - Vamos, Cecília. - Não. - Seus irmãos? - Pode ser. Não vao fazer-nos mal. - Não estão aqui para outra coisa. Ergue mais ainda o busto e a cabeça. Lanço um rápido olhar a sua figura delicada, incapaz de amedrontar um pássaro, compondo uma atitude de afronta — e percebo com clareza o nosso desamparo. Faltam-me instrumentos precisos de defesa — nem músculos nem armas (músculos rápidos, rijos). Idéia de nudez e dependência. O meu amor, apenas não constitui proteção, Cecília, desguarnecida, enrijece o corpo e não parece medir a diferença de forças, agora inconteste: quatro vultos nos espreitam, o espessor da ameaça enegrecendo-os. Volteia o busto, calada, cisca a areia com os dedos. Acha o que procura? Uma pedra? A mão fechada. Três dos estranhos mantém-se um pouco afastados, todos de cabeça descoberta; o outro, de capacete, segura um bastão. Polícia? Este se dirige para o lugar onde estamos. Pode fazê-lo sem pressa: seus três comparsas barram nossa fuga eventual. O de capacete: “Que estão fazendo aí?” Um dos três solta uma risada fina e sôfrega. Sem dar resposta, levanto-me; ajudo Cecília a levantar-se. O carneiro desapareceu. “São surdos? São surdos?” Cecília pôs a bolsa a tiracolo e tem nas mãos os sapatos. Os três paisanos fecham mais o quadrado, enquanto o outro nos ordena mostrar os documentos. Documentos? Intimação expressa numa língua morta ou ainda larvar. A presença dos intrusos, esta me parece clara. Assume um drástico sentido de expulsão, nada casual. Seguro a mão de Cecília e tomo a decisão de afastar-me como se os quatro indivíduos não existissem. Mas o de capacete atravessa a ponta da botina entre os tornozelos e empurra-me. Caio com a boca na areia e antes que inicie um gesto fazem-me rolar com pontapés a altura dos rins. Passa entre as estrelas, curva, a cauda do farol. Meu espancador, capacete na mão, atinge-me com os pés a cada tentativa de erguer-me e Cecília defende-se dos outros. Espanta-me a rapidez com que esquiva os golpes dos agressores e a obstinação com que se conserva em silêncio, não admitindo um só grito de socorro. Consigo, no chão, agarrar a perna do soldado e fazê-lo cair. Precipito-me, de braços abertos, entre os que maltratam Cecília. Um deles segura-me e prende-me o fôlego. Mão dura, larga. Mordo-a, ouço um urro abafado. Curto golpe a altura da nuca me derruba. Tento levantar-me. Tudo que consigo é rolar sobre um ombro e entrever o corpo de Cecília, perdido o equilíbrio, ceder com lentidão e baquear, lento, mais uma vez estapeado. Ouço um lamento, um grito, um chamado, lançado cada um por uma voz diferente — e as estrelas ampliam-se, lagos ofuscantes. Os passos dos ofensores afastam-se depressa. O tropel. A praia estremecendo sob a carga desses passos na areia, como se percorrida por um bando de rinocerontes. Cerro as mãos, tentando manter-me, por este meio, na superfície da minha consciência. Houvesse, em minhas palmas, um fio, uma corda capaz de arrebatar-me a esta cova profunda sobre a qual flutuo! Os lagos das estrelas crescem e diminuem. Sobrevém um esmorecimento, uma paz dissimulada, a doçura de morrer ou de cortar as ligações. Um mel. Um nada. Abel! Meu nome bate a porta das trevas (quantas vezes?) e impede que me renda. Aos poucos, movo-me. Cecília está sentada, com as mãos sobre o sexo e as pernas estendidas, unidas, na exata posição em que as mendigas, sem força para andar, pedem esmolas nas calçadas. As feridas sangram e ela treme. De dor? Seus dentes batem sobre o meu nome. Talvez de frio, o corpo desabrigado, exposto a brisa praiana. Não consigo despir minha camisa em pedaços. Molho a anágua rota de Cecília, tento lavar seu corpo, os cortes, procurando fazer leves as mãos embotadas. Lastimo-a e, ao mesmo tempo, vejo como são redondos e firmes os seus peitos, que brando é o seu ventre dolorido e quanto, a luz das estrelas, delicada a linha da espádua, ligeiramento alçada na curva doce dos ombros. Faço-a levantar-se. Por que não entra no mar? Só um instante. Deve fazer-lhe bem. Ela procura ficar de costas para mim e acaba de despir-se. Seu corpo esbelto, suas costas tênues, suas nádegas miúdas, quase como as de um menino. Dirige-se hesitante para o mar. Chamo-a. Deteve-se. O farol, o firmamento, o vento, as vagas. Cecília guardando-se de ser vista de frente. - Volte-se para mim. Não a tocarei, se você não quiser. Ela obedece. Vejo-a, então, como a vejo em sonho, mas sem leões rodeando-a e sem fogos. Aproxima-se, devagar e resoluta na sua lentidão. A linha clara dos seus dentes e os olhos (quase posso ouvir, neles, o zumbir da febre) cravados em mim. Com a mão esquerda, sopeso a forma do peito, acompanho a cintura em direção ao flanco, sinto na palma a lã, o púbis, anelado. Entre os pêlos: seu pênis vibrante. Retiro a mão, répido, a mão picada pela débil víbora invisível. Cecília toma-a e encosta a cabeça no meu ombro. Conduzido por seus dedos (estremecem, incertos), tateio as doces paredes úmidas, dentre as quais emerge - vivo - o pênis. Real e insólito. Simultaneamente, nossos joelhos esmorecem. Tombamos abraçados, unidas as frontes. Advindas do corpo de Cecília, quinze ou vinte crianças nos rodeiam, andrajosas, sujas, os pés descalços. Com os olhos encovados, contemplam-nos. Um círculo imóvel. Nós, num táxi de molas ruidosas e já áspero o couro das poltronas, dando voltas indecisas entre as ruas do Progresso, da Soledade, das Ninfas, Conde da Boa Vista e Padre Inglês. O motorista, apreensivo, olha-nos pelo retrovisor. Indaga, afinal, se não queremos que nos leve à Polícia. Cecília, abraçada a mim, estremece: move a cabeça apoiada no meu ombro, negando. Baixo o vidro. “Não, nada de polícia.” O suave vento noturno, cheio das vozes que pervagam nas ruas, atenua a dor das feridas. - Acho melhor levá-la em casa, Cecília. Com as pontas dos dedos (tão frios!), Cecília afaga meu rosto e pede que retarde ainda um pouco a volta. O motorista, talvez impaciente e assustado, sugere deixar-nos frente ao Pronto Socorro. Agradeço e ordeno: Casa Forte. Estrada das Ubaias.

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