UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela
leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado.
As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas
em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos
a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.
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Você está em Leitura por rotas » Representação dos oprimidos [T12]
Ó agir humano, ó sucessão das coisas, detende-vos se podeis. Tempo, contraria teu curso, viola teu ritmo, interrompe teu sereno fluxo impassível ou desaba, sem leito e sem comporta, sobre mim. Cecília está comigo. Seu rosto, visto contra as pedras da praia e o mar — o mar vermelho e verde nesta hora da tarde parece simultaneamente eterno e fluído, fugindo à minha posse e mesmo a contemplação. Um rosto flutuante entre contrários. Jazem suas mãos sobre a toalha branca, junto aos copos de vinho, um pouco inquietas.
Homens e mulheres deslizam do seu corpo, andam entre as cadeiras e as mesas rústicas deste restaurante assentado entre coqueiros (alguns troncos varam o teto de palha e quando o vento sopra com mais força ouço o roçar das palmas sobre a coberta), saem, sentam-se nas pedras, estranhos, suas pegadas cruzam-se na areia. Um deles toca-me o pulso, de leve. Um homem pálido, a fronte fugidia, o nariz aquilino, o queixo delicado. Brilham os dois olhos, mas um não vê, o direito: o outro me contempla, afetuoso. Meu pai. Não o pai carnal e nem sequer um pai imaginário. Um pai de outro gênero. Reconheço-o e sinto o cheiro do seu corpo.
Um cheiro de trabalho constante, mas não árduo. Cecília, devagar, fala do que faz no emprego. Move-se, desde as primeiras horas da manhã, entre o Hospital Pedro II e instituições de previdência — dispensários, sindicatos, centros sociais -, às voltas com funcionários omissos e médicos quase sempre impassíveis, buscando solucionar problemas enredados. Ordenado exíguo e às vezes pago com atraso. As coisas de que fala, inserindo-a na vulgaridade da vida e revelando o seu modo de viver, ativo e generoso, impedem — prendo as suas mãos inquietas -, desde este primeiro encontro prolongado, que eu a veja de um modo purgador, sem pó nos tornozelos. Intangível? “Nada esperam. O mais difícil de tudo é evitar que desistam”. Cecília, portadora de corpos, romã de populações, não é — ao contrário de mim — um ser à margem. Suas horas de trabalho e mesmo, não raro, as horas da tarde, estão ligadas as atribulações dos que povoarn os mangues e os bairros afastados — Agua Fria, Chacon, Vasco da Gama.
A sombra do restaurante avança para o mar e a dourada luminosidade do céu adere às nuvens raras. Cecília passa a mão entre os cabelos curtos. Rugem leões verdes nas ondas que golpeiam as pedras.
Seguimos ao longo da praia, entre o fim do dia e o vir da noite, entre a terra firme e as águas, entre. O mar parece coberto de moedas de cobre meio oxidadas, vermelhas e verdes. Cecília descalça os sapatos. Está sem meias e seus pés um pouco largos nas plantas, habituados a andar, pousam com ritmo na areia úmida. Meu pai e suas réguas. Com giz de alfaiate, risca um corte de brim. As ondas, sucessivas, formam-se e desfazem-se, ruidosas: e manchas de óleo, e detritos de cocos e pedaços de alcatrão despejados por algum navio ao largo. O céu uma cúpula de ouro, com efígies de cágados. Cecília: figura delgada, ossos de pássaro, a magia da came tornando ainda mais sutis os seus ossos. Plumagem. Nela, não vejo asas. Tão leves, porém, são na areia clara as marcas dos seus pés e tal encanto existe nos seus ossos, que me pergunto: “Flutua?”
Seguimos ao longo da praia, sem destino. Em grandes haustos, respiramos setembro. Os instantes são dias.
Cresce, neste passeio em que tardes e noites se concentram, meu amor por Cecília, a precisão de incorporá-la à minha vida (ou de incorporar, à sua vida, a minha), crescem a nossa intimidade e o mútuo conhecimento.
Um carneiro nascido das areias e das espumas das ondas acompanha-nos, dócil.
De dentro de Cecília, meu pai, entoando uma cantiga dos seus tempos de moço, olha para mim e põe a mão no meu ombro. Chapéu de feltro, a barba negra raspada, cicatriz no pescoço, as mangas da camisa arregaçadas. Também dócil, segue devagar ao lado do carneiro. Seu relógio barato, de pulso, marca mais ou menos cinco horas.
Antes que mergulhem os pássaros, novo rumor se inicia, este em Cecília: soalhas de pandeiros. Respondem logo ao rumor, à direita, com um pouco mais de intensidade, outros tantos pandeiros, tangidos por meninas entre dez e treze anos. Eis-nos escoltados pelos dois cordões do pastoril, sete figuras de um lado, com longas saias vermelhas; sete de outro, com longas saias azuis, algumas desbotadas. Entre os dois cordões e de tal modo que parte do seu corpo trêspassa o de Cecília, vai a Diana, vestida de azul e vermelho, sinal de que pertence as duas alas. No pandeiro redondo, maior que os das pastoras e que ela faz soar com os braços levantados, também esvoaçam fitas vermelhas e azuis. Das mesmas cores é o grande laço que prende os seus cabelos crespos. As pernas da Diana e as de Cecília, dançando as da primeira, andando as da segunda, trançam-se. Nem todas as meninas trazem pandeiros. Duas conduzem uma cesta com jambos, laranjas e mangas-rosas; duas sobraçam dálias, lírios e açucenas. A Diana, cessando de tocar, ergue ainda mais os braços, faz-se silêncio e todos nós paramos. Rugem leões verdes, nas ondas, entre os peixes. As pastoras, de repente, iniciam uma loa, marcando o compasso da música com os pés e os pandeiros, estes enfeitados de fitas como a grande roda desaparecida:
Digo a Cecília (em redor de nós as vozes infantis, o bater de pés na areia, o ruído festivo dos pandeiros, o quebrar das ondas, o cheiro da salsugem e do suor de Modesto Canabarro) que desejaria estar inaugurando o mundo na sua companhia e em paz com todos os bichos.
Cecília, de cabeça baixa, lembra que não mais existe e não será reencontrada a harmonia do tempo em que a onça lambe as unhas do homem.
Aperta a minha mão e com a outra protege a saia batida pelo vento. Seu corpo continua povoando a praia. Com as pastorinhas, segue-nos, acompanhando a loa uma pequena orquestra: clarinete, pistão, bombardino, bombo e um trombone rouco. No bombo está escrito “DEIXA FALAR”, seu portador, desdentado, ri com alegria, dançando ao compasso da jornada. Os músicos, de cor escura e vestidos pobremente, não têm sapatos. Tilinta o chocalho do carneiro e o velho barbudo continua: “Sou Modesto Francisco das Chagas Canabarro!”
A areia, que range sob os meus pés e sempre teve o nome de areia, não é a mesma. Os nomes e as coisas (a palavra tarde e a tarde, amar e a palavra amar), as coisas e seus nomes transformaram-se.
O mundo, agora que seguimos pela praia, vivos, reais, de mãos dadas, difere do mundo que precede este encontro.
Uma moeda suja, enterrada há muito tempo e sua nitidez depois de limpa. Vê-se o perfil do Rei (que não se via), vê-se a data da cunhagem, vê-se a divisa, o valor (que não se via) e vê-se o brilho do metal. A presença de Cecília revela o mundo oculto. Fosse tudo realmente novo, pacífico — onças lambendo minhas unhas e nomeado pela primeira vez!
e o meu amor, abrangendo-os, liga-os a mim com laços cuja natureza me escapa. O Recife (muros cor de chumbo da Casa de Detenção, São Pedro dos Clérigos com sua esbelta fachada e as pedras do calçamento cheirando a frutas podres, barcaças de pequena cabotagem, seus mastros oscilando no Cais da Alfândega), a Lua refletindo-se no rio, o Recife, fração do mundo, muitos dos seus habitantes não mais distanciados, não mais estranhos, integrados no meu ser através deste amor e de Cecília, sua substância e sua arca. Cecília telefona-me. Suas palavras, vindas através do Recife meio adormecido, parecem-me inaugurar a manhã: pegadas na areia de uma praia sobre a qual transita, solitária, a primeira banhista.
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