UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por rotas » Representação dos oprimidos [T14]

O guarda-chuva aberto de Cecilia é o mesrno com que desce do ônibus no dia em que vislumbro, surpreso, a povoada espessura do seu corpo, frente ao Museu do Estado. Vermelho, o tecido parece azul ou cinza, nesta hora da noite e longe das lâmpadas. Grãos de chuva batem na fazenda tensa. Brilham os seus olhos na sombra e me aquece, íntimo, o calor da sua carne, através das roupas que vestimos — um hálito, opondo-se a úmida exalação que transborda do canal. Memória sem lembranças, agora, o rosto de Cecília. Ocultas, silentes, as criaturas que nele se recordam ou imaginam-se.

Cecília, crispada, cinge-me e inclina um pouco o guarda-chuva, numa tentativa de ocultar-nos.

- Onde nos encontramos amanhã, Abel?

- Onde quiser.

- Não aqui.

- Onde, então?

Sua respiração me queima o rosto. Ela joga a cabeça para trás, morde-me a boca. A impulsividade do seu gesto.

Volto-me: Cecília está de pé, nua, sob os fogos, com seus cabelos curtos e seu corpo de efebo guarnecido de seios, seguida por uma coorte de leões cujos pelos fulvos refletem ao mesmo tempo a lua e as chamas volantes. Sinto que o ar — e a vida com ele — é sugado de dentro do meu tronco. Descerro os dentes, sai o ar da boca, um vômito, vomito o ar que prendo na boca e onde leio, como traços de sangue, a palavra fogo e o nome de Cecília. Campo e céu apagam-se — e o vento esmaece. Cecília continua de pé a minha frente, o peso do corpo repousando sobre a perna esquerda, dominando os leões, sob o luar. Vagueia entre os potentes e temíveis animais um rumor semelhante ao da ressaca na praia dos Milagres.

Sobre o mar quieto, perpassa uma estrela cadente. Nenhum vulto humano em toda a extensão da praia. Cecília deitada, o flanco ligeiramente torcido na minha direção e a bolsa a servir de travesseiro. Seus olhos, iluminados pelos astros distantes (um cavaleiro, a passo, transita no seu corpo, assoviando) e pelas luzes acesas dos navios, fundeados ao largo, fitam-me. O farol percute a noite. O carneiro, deitado, rumina a paz. Cecília estende as duas mãos e atrai minha cabeça, comprime-a sobre os peitos. Crianças fogem e escondem-se, à aproximação do cavaleiro. Abro a boca, aspirando o vento calmo e a voz de Cecília. As pálpebras, cerro-as. Suas palavras, em torno: fala de lutas, mas não sei o que diz. Ouço-a como se lê, perturbando o texto e acrescendo certo mistério à leitura, o trecho impresso fora de lugar. Tocam-me essas palavras não compreendidas. Minha mão avança entre as suas coxas e ela prende-a com um movimento rápido. Seu coração bate forte sob a pressão do meu rosto; os pés estão cruzados; as pernas estendidas; todo o corpo tenso. Começo a beijá-la. No peito, nos ombros, nas mãos. Aos poucos, a rigidez se desfaz. Seus calcanhares, erráticos, riscam a areia.

O carneiro, num salto, levanta-se e dá alguns passos, vendo a cabeça. Apuro o ouvido. Um assobio fino e significativo, vindo não sei de onde, atravessa-nos. As ondas quebram, bastante longe de nós. Outro silvo, este mais agudo, responde ao primeiro. Do lado oposto? Sim. Dois novos assovios indicam haver movimentos na sombra, próximos de nós — ou demarcam o cerco. O cerco. Ponho-me de joelhos, olhando para os lados. Ela se ergue. Sua cabeça contra o halo — distante, pacífico — das luzes de Olinda. Talvez ainda possamos escapar. Cecília, recusando a sugestão, segura meu braço, faz com que me volte e beija-me. Vejo um vulto de homem por cima do seu ombro, um vulto impreciso. Aproxima-se aos poucos, com solércia e cautela.

- Vamos, Cecília.

- Não.

- Seus irmãos?

- Pode ser. Não vao fazer-nos mal.

- Não estão aqui para outra coisa.

Ergue mais ainda o busto e a cabeça. Lanço um rápido olhar a sua figura delicada, incapaz de amedrontar um pássaro, compondo uma atitude de afronta — e percebo com clareza o nosso desamparo. Faltam-me instrumentos precisos de defesa — nem músculos nem armas (músculos rápidos, rijos). Idéia de nudez e dependência. O meu amor, apenas não constitui proteção, Cecília,

Lastimo-a e, ao mesmo tempo, vejo como são redondos e firmes os seus peitos, que brando é o seu ventre dolorido e quanto, a luz das estrelas, delicada a linha da espádua, ligeiramento alçada na curva doce dos ombros. Faço-a levantar-se. Por que não entra no mar? Só um instante. Deve fazer-lhe bem. Ela procura ficar de costas para mim e acaba de despir-se. Seu corpo esbelto, suas costas tênues, suas nádegas miúdas, quase como as de um menino. Dirige-se hesitante para o mar. Chamo-a. Deteve-se. O farol, o firmamento, o vento, as vagas. Cecília guardando-se de ser vista de frente.

- Volte-se para mim. Não a tocarei, se você não quiser.

Ela obedece. Vejo-a, então, como a vejo em sonho, mas sem leões rodeando-a e sem fogos. Aproxima-se, devagar e resoluta na sua lentidão. A linha clara dos seus dentes e os olhos (quase posso ouvir, neles, o zumbir da febre) cravados em mim. Com a mão esquerda, sopeso a forma do peito, acompanho a cintura em direção ao flanco, sinto na palma a lã, o púbis, anelado. Entre os pêlos: seu pênis vibrante. Retiro a mão, répido, a mão picada pela débil víbora invisível. Cecília toma-a e encosta a cabeça no meu ombro. Conduzido por seus dedos (estremecem, incertos), tateio as doces paredes úmidas, dentre as quais emerge - vivo - o pênis. Real e insólito. Simultaneamente, nossos joelhos esmorecem. Tombamos abraçados, unidas as frontes. Advindas do corpo de Cecília, quinze ou vinte crianças nos rodeiam, andrajosas, sujas, os pés descalços. Com os olhos encovados, contemplam-nos. Um círculo imóvel.

Cecília, abraçada a mim, estremece: move a cabeça apoiada no meu ombro, negando. Baixo o vidro. “Não, nada de polícia.” O suave vento noturno, cheio das vozes que pervagam nas ruas, atenua a dor das feridas.

- Acho melhor levá-la em casa, Cecília.

Com as pontas dos dedos (tão frios!), Cecília afaga meu rosto e pede que retarde ainda um pouco a volta.

Agradeço e ordeno: Casa Forte. Estrada das Ubaias.

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333