UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » Representação dos oprimidos [T15]

Na pele, onde tocamos, ela estremece. Tão flagelada a sua pobre carne? De agressão ou de desejo? Trespassamo-nos solícitas. Suspicaz, Cecília nos espreita, as mãos cerradas. Vendo as duas velas acesas em frente ao oratório, pede a minha irmã: “Apague a lâmpada.” Obedeço. Procuro no guarda-roupa um vestido nosso, antigo, leve e limpo, que lhe sirva. Ouço o grito. Um soluço? Soluço ou grito: vejo sem querer, a luz discreta das velas, o sexo duplo e dúbio de Cecilia. Verso e reverso. Bainha e faca. Curvo-me aos pés da cama, a cabeceira da cama — e recebo na cara, coice, o olhar da minha irmã. Acaricio os pés feridos de Cecília, acaricio o rosto de Cecília, beijo os seus cabelos e faço por aquecer, com o calor quase extinto do meu corpo, seus pés alados e firmes.

Saio do quarto e Cecília me segue, mais velha em meu vestido malva, de seda, com rosas silvestres no peito. Por trás de Cecília, da porta do quarto, vejo Abel de pé na sala de jantar. Une-os o arco de chamas. Ele se volta para mim e para mim, o álbum ainda na mão. Acaso nos vê? O ar com que contempla Cecília por entre as pálpebras inchadas revela uma alegria estranha. Sua expressão é a do homem ao abrigo de escolhas. Ele abarca os contrários em uma das raras encarnações terrenas.

Range o portão de ferro. Vejo, na minha cara, marcas da agressão, sento-me na cadeira de balanço, as passadas leves de Cecília fazem mais leve o alpendre e a tarde mais plácida, seu vulto surge na porta, risos seguem-na e outros vultos entram, gente da lavoura, as mulheres com panos na cabeça, os homens com chapéus de carnaúba, as caras ressecadas pelo sol (enrugadas ou riscadas de punhal?), mãos duras como paus e os pés descalços uns cascos, as roupas em pedaços. Cecília, rindo, a blusa amarela, a saia rodada, com desenhos de pássaros e flores, precipita-se em direção a mim, com tal ímpeto que as cortinas vibram. Cheiro dos lavradores - suor queimado e barro. As enxadas, as foices e os facões chocam-se contra as paredes. Arde a pele de Cecília como esta hora da tarde.

A cabeça em macios travesseiros de macela, na colcha branca de rendas posta pela Gorda - sobre a qual, de través, ela estendeu ainda uma toalha rubra, de linho, com que me cubro em parte —, vejo Cecília despir-se. Os múltiplos odores de que o quarto está impregnado, vindos desses vasos porejantes, cheios de refresco e água de coco, das bandejas com talhadas de abacaxi, mesclados ao cheiro seco das folhas de canela semeadas pelo chão envolvem-na: frutal e umbroso parece-me seu corpo. Os sapatos claros, novos, jazem virados sobre a esteira que serve de tapete. Guarda-nos um pouco de sermos vistos de fora a cortina de filé, numa só peça, com o leão rampante mordendo a Lua. Difícil, mesmo sem cortina, sermos vistos por quem passe no oitão. O quarto, escolhido e aprestado com zelo, situa-se na ala oposta ao alpendre, sobre a parte mais baixa do terreno. Estamos, com isto, expostos a afuscante luz do dia e ocultos: a altura da janela nos esconde. Escutamos as folhas de um flamboyant arranhando as esquadrias (abram-se, em janeiro, suas flores sangüíneas), vemos o ramo que atinge a cortina e invade o aposento, vemos o céu de índigo, imensas nuvens brancas - e não somos vistos. Os rugidos do mar, não muito violentos, morrem aos pés de Cecília.

Este amor, embebido da ânsia, nunca vencida, de resgatar meus atos e escolhas infelizes, é magnificado com a circunstância de que no corpo de Cecília (Cecília: corpo e corpos, homens e mulheres, suas fábulas), eu ame de modo uno, não perturbado pela interferência purificadora - distanciadora, portanto, do espírito, seres numerosos e concretos. Fora do seu corpo, um amor como este é inviável ou realizável apenas como operação mental. Então, será amor? Sua androginia acrescenta ainda, as nossas relações, novos e provocadores significados. Não os vejo claramente e devo guardar-me de decifrações, o que significaria decifrar Cecília. Contemplo-os, atônito, como se contemplasse pela primeira vez uma figura geométrica, um signo, ecoante de lembranças ocultas, de sugestões simbólicas e de nexos ainda não discerníveis.

Nem tudo, aqui, é segredo ou verdade apenas intuída. Conciliam-se, bem vejo, contrários em Cecília; e não posso isolar, na sua carne, a Mulher e o Homem. Macho e fêmea, ela não distingue os inconciliáveis fundidos no seu corpo. Ama-me, então, duplamente - mulher, homem - ou o macho difuso nela incrustado avalia-me com hostilidade? Há, neste caso, um teor de repulsa na sua entrega? Pode suceder que o macho e a fêmea cruzados em Cecília (contempla-me talvez com quatro olhos, dois de mulher e dois de homem) amem-se de um modo absoluto, conquanto incestuoso, amor impossível aos seres comuns. Todos os meus gestos, palavras, atos - segregado e só que sou — seriam um simulacro desse amor, trespassado de ilações misteriosas. Nos códigos alquímicos, um hermafrodita, imagem das núpcias entre o Sol e a Lua, morre e apodrece para renascer: dele se obtém a Pedra Branca, fermento para o Reinício. Um símile impõe-se, por tudo isto, entre o andrógino e Jano, deus bifronte. Encontrando-o, adquirem as minhas relações com Cecília, assim o julgo, uma expressão insólita e mesmo assustadora. Indispensável, por enquanto, ao meu comércio com o mundo, chegar à compreensão, ainda que imperfeita, da função do caos e da sua natureza. Os dois rostos de Jano, gravados em tantas efígies monetárias, representam, leio talvez em Ovídio, um vestígio do seu estado primitivo: nas trevas onde o mundo ainda não existe, quando tudo é pesado e leve ao mesmo tempo, Jano, deus dos limiares - e portanto das partidas e das voltas chama-se Caos. Liga-se, simultaneamente, à ordenação e a desordem. Minhas indagações, neste caso, estão escritas em Cecília?

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