UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela
leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado.
As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas
em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos
a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.
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Você está em Leitura por rotas » Representação dos oprimidos [T11]
Cecília a alguns passos de mim, presa, após mil voltas, na rede cuidadosamente urdida, Cecília, com seus cabelos curtos, seus olhos luminosos, seus quadris estreitos, suas pernas delgadas, igual a ninguém, atraída pelo morto - esse chamariz - e lançada de uma vez por todas na área das alegrias e males dos quais me cumpre ser o portador, o correio, o provedor, o instrumento, a mão. Dez mil homens estão na sua carne: como no centro de um olho atônito. Dez mil homens estão na sua carne: como numa vereda pouco transitada ao longo de dez anos. Dez mil homens, ataviados com as suas próprias fábulas. No seu corpo, há corpos. Cecília, corpo e – ao mesmo tempo - mundo, olha-me na moldura da porta, com a alegria que nasce nos seus olhos e em não sei que ponto do seu rosto, talvez em todas as linhas do seu rosto, um rosto novo, surpreso, ávido e feliz, sem o mínimo traço de maldade, sim, sem ódio, sim, tocado de audácia, de decisão, de força, um rosto de quem não tem medo de leões. Na sua carne estável e instável, real e mágica, na sua carne transparente e muitas vezes visível (na carne de Cecília a percepção se repete, cresce em reflexos, respostas e explosões), na sua carne, simulacro da memória, a presença dos seres que haverei de amar, amando-a. e alheio a tudo, dentro de uma claridade que me ilumina por dentro e assemelha-se a um globo de espelhos em pedaços, com milhares de réstias que se cruzam, contemplo Cecília ao sol do meio-dia. Com os olhos (neles zumbem negros e rápidos leões), parece dizer-me: "Tenho a minha vida nas mãos, Abel. Recebe-a. Mas ouve: o amor, artefato de difícil manejo, é cheio de botões secretos e de facas que à mínima imperícia ou distração saltam voando e lanham a carne". Engano-me, eu, se nessa companheira reconheço a minha substância? Ela emerge de mim e da minha vigília tão semelhante a um sono prolongado - ela e os seus entes, uns nus, outros vestidos, uns sem armas, outros armados. Contemplo no seu corpo, assim parece-me agora, a minha e a sua memória, simultaneamente. As presenças humanas nessas memórias. Como se eu pudesse ver, ouvir, tocar as visões nem sempre nítidas, mas cheias de verdade e nunca fixadas em uma única idade de suas vidas, as visões ou espectros que habitam a memória e têm, junto com os brinquedos outrora possuídos e os lugares onde se viveu, o duvidoso nome de recordações. "Cecília, o equilíbrio é pouco seguro e ilusório, bem sei, quando o homem nele está incluído. Mesmo no Éden, esse estado perdura muito menos do que se pode esperar. Quantos passos daremos juntos?" Este minuto: espinhal desmesurado, esférico, a arder em torno de mim, como num fogo de diamantes.
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