UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T12]

Ó agir humano, ó sucessão das coisas, detende-vos se podeis. Tempo, contraria teu curso, viola teu ritmo, interrompe teu sereno fluxo impassível ou desaba, sem leito e sem comporta, sobre mim. Cecília está comigo. Seu rosto, visto contra as pedras da praia e o mar — o mar vermelho e verde nesta hora da tarde parece simultaneamente eterno e fluído, fugindo à minha posse e mesmo a contemplação. Um rosto flutuante entre contrários. Jazem suas mãos sobre a toalha branca, junto aos copos de vinho, um pouco inquietas. Homens e mulheres deslizam do seu corpo, andam entre as cadeiras e as mesas rústicas deste restaurante assentado entre coqueiros (alguns troncos varam o teto de palha e quando o vento sopra com mais força ouço o roçar das palmas sobre a coberta), saem, sentam-se nas pedras, estranhos, suas pegadas cruzam-se na areia. Um deles toca-me o pulso, de leve. Um homem pálido, a fronte fugidia, o nariz aquilino, o queixo delicado. Brilham os dois olhos, mas um não vê, o direito: o outro me contempla, afetuoso. Meu pai. Não o pai carnal e nem sequer um pai imaginário. Um pai de outro gênero. Reconheço-o e sinto o cheiro do seu corpo. Um cheiro de trabalho constante, mas não árduo. Cecília, devagar, fala do que faz no emprego. Move-se, desde as primeiras horas da manhã, entre o Hospital Pedro II e instituições de previdência — dispensários, sindicatos, centros sociais -, às voltas com funcionários omissos e médicos quase sempre impassíveis, buscando solucionar problemas enredados. Ordenado exíguo e às vezes pago com atraso. As coisas de que fala, inserindo-a na vulgaridade da vida e revelando o seu modo de viver, ativo e generoso, impedem — prendo as suas mãos inquietas -, desde este primeiro encontro prolongado, que eu a veja de um modo purgador, sem pó nos tornozelos. Intangível? “Nada esperam. O mais difícil de tudo é evitar que desistam”. Cecília, portadora de corpos, romã de populações, não é — ao contrário de mim — um ser à margem. Suas horas de trabalho e mesmo, não raro, as horas da tarde, estão ligadas as atribulações dos que povoarn os mangues e os bairros afastados — Agua Fria, Chacon, Vasco da Gama. A sombra do restaurante avança para o mar e a dourada luminosidade do céu adere às nuvens raras. Cecília passa a mão entre os cabelos curtos. Rugem leões verdes nas ondas que golpeiam as pedras. Seguimos ao longo da praia, entre o fim do dia e o vir da noite, entre a terra firme e as águas, entre. O mar parece coberto de moedas de cobre meio oxidadas, vermelhas e verdes. Cecília descalça os sapatos. Está sem meias e seus pés um pouco largos nas plantas, habituados a andar, pousam com ritmo na areia úmida. Meu pai e suas réguas. Com giz de alfaiate, risca um corte de brim. As ondas, sucessivas, formam-se e desfazem-se, ruidosas: e manchas de óleo, e detritos de cocos e pedaços de alcatrão despejados por algum navio ao largo. O céu uma cúpula de ouro, com efígies de cágados. Cecília: figura delgada, ossos de pássaro, a magia da came tornando ainda mais sutis os seus ossos. Plumagem. Nela, não vejo asas. Tão leves, porém, são na areia clara as marcas dos seus pés e tal encanto existe nos seus ossos, que me pergunto: “Flutua?” Seguimos ao longo da praia, sem destino. Em grandes haustos, respiramos setembro. Os instantes são dias. Cresce, neste passeio em que tardes e noites se concentram, meu amor por Cecília, a precisão de incorporá-la à minha vida (ou de incorporar, à sua vida, a minha), crescem a nossa intimidade e o mútuo conhecimento. Hermenilda ou Hermelinda não mente quando diz que sou homern das letras e dos livros. Planejo escrever. Para quê? A certa altura do seu governo, tão prolongado, Vargas preocupa-se com as saúvas. Podia ter inventado, como prograrna, multiplicar os pássaros e os tamanduás. Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um sentido mais preciso e elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir, de não ir levando ao azar a minha vida. Uma decisão artificial, Cecília. Honesta, contudo. Invento, ao mesmo tempo que as formigas, pássaros imaginários e tamanduás com língua de fogo. Jogar umas palavras contra outras, exercer sobre elas uma espécie de atrito, fustigando-as, até que elas desprendam chispas: até que saltem, dentre as palavras, demônios inesperados. Numa sociedade como a nossa, da qual, mais ou menos como os seus clientes do Hospital Pedro II, desconfio e que não me atrai, é, com atritar as consciências — até que estas, igualmente, façam-se em chamas e incendeiem o arcabouço velho —, o que resta fazer. Ambas, vê-se bem, atividades mais ou menos gratuitas, e, em certo sentido, fora da lei. Estou longe de ter as virtudes exigidas para incendiar as consciências, como faz, na zona canavieira, Francisco Julião. Falta-me a energia cega dos reformadores; e com a minha tendência, talvez arcaica, para raciocinar com todos os dados dos problemas, custaria muito a decidir-me sobre os valores que devem ser incinerados ou substituídos. Nem, ao menos, sei dizer com segurança se a profissão que você exerce, fraterna e retificadora, é mesmo adequada à realidade que vivemos. Ela pode dar um sentido a sua vida. Mas, verdadeiramente, tem sentido hoje? Não sou capaz de responder, Cecília. Resta-me, então, por este modo recusando todas as estúpidas formas oficiais de viver, isto que suponho ficar em minha alçada — intentar maquinações com as palavras. Projeto desesperado e enleante. Um carneiro nascido das areias e das espumas das ondas acompanha-nos, dócil. De dentro de Cecília, meu pai, entoando uma cantiga dos seus tempos de moço, olha para mim e põe a mão no meu ombro. Chapéu de feltro, a barba negra raspada, cicatriz no pescoço, as mangas da camisa arregaçadas. Também dócil, segue devagar ao lado do carneiro. Seu relógio barato, de pulso, marca mais ou menos cinco horas. Adolescentes furam as ondas traiçoeiras da vazante. Por vezes, rabeia um peixe na onda levantada. Meu pai, apreensivo, olha para trás e afasta-me, num gesto protetor. Nesse momento, ouço o rumor dos guizos. Uma grande roda cor de prata, alta como um sobrado, vem girando na praia. Uma roda de metal, com oito raios, um pouco vacilante, avançando sozinha, devagar. Abrimos alas. Vem a roda, exalando calor, aproxirna-se, cheia de guizos e ornada com fitas coloridas. Os raios e o aro, polidos, refletem o céu de ouro, o sol poente, a superfície acobreada do mar. Avulta, passa entre nós, a roda, lenta, o doce rumor dos guizos tornando a tarde mais leve, afasta-se, deixa na areia o sulco da passagem, inflete em direção aos adolescentes que se banham, o rumo é corrigido, uma roda solene, nova, brilhante, seguindo ao longo da praia, sem que ninguém dê atenção a sua passagem majestosa e insólita. Desvia-se para a esquerda, abre sem ser abalada uma onda que se quebra, avança lentamente mar adentro, lentamente, desaparece ao longe. Grandes aves rápidas e claras surgem nesse ponto do mar, voam ameaçadoras, cinco ou seis, alteiam-se e em seguida mergulham, céleres, com as asas fechadas, como se atacassem famintas um cardume. Antes que mergulhem os pássaros, novo rumor se inicia, este em Cecília: soalhas de pandeiros. Respondem logo ao rumor, à direita, com um pouco mais de intensidade, outros tantos pandeiros, tangidos por meninas entre dez e treze anos. Eis-nos escoltados pelos dois cordões do pastoril, sete figuras de um lado, com longas saias vermelhas; sete de outro, com longas saias azuis, algumas desbotadas. Entre os dois cordões e de tal modo que parte do seu corpo trêspassa o de Cecília, vai a Diana, vestida de azul e vermelho, sinal de que pertence as duas alas. No pandeiro redondo, maior que os das pastoras e que ela faz soar com os braços levantados, também esvoaçam fitas vermelhas e azuis. Das mesmas cores é o grande laço que prende os seus cabelos crespos. As pernas da Diana e as de Cecília, dançando as da primeira, andando as da segunda, trançam-se. Nem todas as meninas trazem pandeiros. Duas conduzem uma cesta com jambos, laranjas e mangas-rosas; duas sobraçam dálias, lírios e açucenas. A Diana, cessando de tocar, ergue ainda mais os braços, faz-se silêncio e todos nós paramos. Rugem leões verdes, nas ondas, entre os peixes. As pastoras, de repente, iniciam uma loa, marcando o compasso da música com os pés e os pandeiros, estes enfeitados de fitas como a grande roda desaparecida: “Vinde, vinde, moços e velhos, vinde todos apreciar, como isto é bom, como isto é belo, como isto é bom e bom demais”. A noite vem chegando. Entre os dois cordões, um homem já idoso, de barba e cartola, metido num fraque sovado, grita agitando as mãos: “Sou Modesto Francisco das Chagas Canabarro. Sou conhecido nestas paragens. Sou Modesto Francisco das Chagas Canabarro!” Berra o carneiro, Cecília sorri, meu pai nos segue calado. Digo a Cecília (em redor de nós as vozes infantis, o bater de pés na areia, o ruído festivo dos pandeiros, o quebrar das ondas, o cheiro da salsugem e do suor de Modesto Canabarro) que desejaria estar inaugurando o mundo na sua companhia e em paz com todos os bichos. Cecília, de cabeça baixa, lembra que não mais existe e não será reencontrada a harmonia do tempo em que a onça lambe as unhas do homem. Aperta a minha mão e com a outra protege a saia batida pelo vento. Seu corpo continua povoando a praia. Com as pastorinhas, segue-nos, acompanhando a loa uma pequena orquestra: clarinete, pistão, bombardino, bombo e um trombone rouco. No bombo está escrito “DEIXA FALAR”, seu portador, desdentado, ri com alegria, dançando ao compasso da jornada. Os músicos, de cor escura e vestidos pobremente, não têm sapatos. Tilinta o chocalho do carneiro e o velho barbudo continua: “Sou Modesto Francisco das Chagas Canabarro!” A areia, que range sob os meus pés e sempre teve o nome de areia, não é a mesma. Os nomes e as coisas (a palavra tarde e a tarde, amar e a palavra amar), as coisas e seus nomes transformaram-se. O mundo, agora que seguimos pela praia, vivos, reais, de mãos dadas, difere do mundo que precede este encontro. Uma moeda suja, enterrada há muito tempo e sua nitidez depois de limpa. Vê-se o perfil do Rei (que não se via), vê-se a data da cunhagem, vê-se a divisa, o valor (que não se via) e vê-se o brilho do metal. A presença de Cecília revela o mundo oculto. Fosse tudo realmente novo, pacífico — onças lambendo minhas unhas e nomeado pela primeira vez! À noite, a casa de Hermenilda e Hermelinda, sem a cantoria que a luz diurna aciona nas gargantas dos pássaros, dá a impressão de ser menor. Algum (há pesadelos de pássaros?) Solta um pio aflito e ouve-se por vezes uma surda agitação de asas ou de rostros. Como se o conjunto de pássaros formasse um corpo — um corpo que nos contivesse a todos — e o corpo tremesse ou mudasse um pouco de lugar. Hermenilda transitou para Hermenilda e foi ocupada pela irmã. Pode suceder, admito, que apenas hajam deslizado, de uma para outra, os respectivos nomes. Houve, em todo caso, uma troca radical: não são as mesmas. Será por isto que ouvem com tanta indiferença, um pouco sombrias, olhando vagamente para os lados, minha atropelada confissão a respeito de Cecília? A vibração do encontro persiste em mim e eu recuso-me a dormir. Quantos lugares percorro nesta noite? Vou de um ponto a outro do Recife e encaro as pessoas. Evocam, essas presenças alheias, as suas próprias matrizes, existentes no corpo encantado de Cecília? Serão, ao contrário, matrizes dos entes concretos que transitam nesse corpo e o formam? Como saber? Sei apenas que os viajantes frente aos guichês ignóbeis da Estação Rodoviária e o velho esquálido que vigia a inútil borboleta enferrujada; os vendedores de peixe na Praça do Mercado; as prostitutas nas sacadas da Rua Born Jesus, mostrando a língua ao ritmo das músicas que as vitrolas tocam alto nas salas; a população dos mocambos sob a negra ferragem deteriorada na Ponte Velha e o cego no Cais de Santa Rita, agitando alguns níqueis, tristemente, numa bacia de queijo, sem ninguém por perto, o tilintar das moedas tornando o Cais mais desértico, todos podem existir na carne de Cecília — e o meu amor, abrangendo-os, liga-os a mim com laços cuja natureza me escapa. O Recife (muros cor de chumbo da Casa de Detenção, São Pedro dos Clérigos com sua esbelta fachada e as pedras do calçamento cheirando a frutas podres, barcaças de pequena cabotagem, seus mastros oscilando no Cais da Alfândega), a Lua refletindo-se no rio, o Recife, fração do mundo, muitos dos seus habitantes não mais distanciados, não mais estranhos, integrados no meu ser através deste amor e de Cecília, sua substância e sua arca. Escritórios e lojas ainda fechados. O vento matinal agitando nas calçadas silentes algumas folhas caídas pela madrugada. O dia uma planura clara e virgem a espera dos homens. Cecília telefona-me. Suas palavras, vindas através do Recife meio adormecido, parecem-me inaugurar a manhã: pegadas na areia de uma praia sobre a qual transita, solitária, a primeira banhista.

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