UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T17]

- Está com cara de cachorro doido. Deu-se a melódia? Emprenhou a menina? Minha mãe fala em voz baixa e esta precaução transforma-a. Joga a bolsa na mesa, senta-se na única cadeira, puxa o vestido sobre os joelhos. Sento-me na cama. - Quem lhe falou dessa história? - Quer saber mesmo? Sua mulher. Esteve no chalé agora de manhã. Cheia de palavras doces. Eu desmenti, sabe? Mas quero que me diga se é verdade. - Isso era motivo para se largar de Olinda e vir aqui na pensão? Qual é a urgência? - Há urgência, sim. (A boca ainda menor e mais arqueadas as sobrancelhas finas.) Fique sabendo que ela não largou a bolsa um minuto. A bolsa parecia estar pesada. O gataco me fita com os olhos amarelos. Escorrega pelas suas pernas, senta-se no chão e enfia as unhas no lençol, os músculos tensos. - É verdade, Abel? Então, seja homem e resolva a parada. Vão para o chalé de uma vez. Ando cheia de falar com as paredes. - Depois, pode ser. Não agora. Por pouco a senhora não encontra aqui os irmãos. Um deles está armado. Mete a mão no decote e mostra a cicatriz no ombro: - Está vendo, não está? Isto é lembrança do tempo dos meus estudos. Você sabe em que escola aprendi. Conheço o mundo e os inquilinos do mundo, homem. Dois caras desses, que só andam encangados um no outro, têm lá coragem de atirar em ninguém? Atiram coisa nenhuma. Tenho muito mais medo da sua mulher. Quero saber. Vão ou não vão? Corredores noturnos do Hospital Pedro 11. Apoiada a um bastão, uma freira reza em altas vozes frente às portas dos quartos. Este o lugar onde Cecília, ardorosa e cândida, vive parte dos seus dias, açulando a virtude de exigir nos que aceitam por norma não ter direitos no mundo. Alguém, no térreo, conserta um objeto de metal e tudo que percebo é som, desde os sacos de farinha de trigo revestindo os biombos da enfermaria às janelas rematadas em curva, abrindo para a manhã de abril. Cecília entra (a voz da freira, um instante, invade a enfermaria), entra e abraça-me, calada. Verdes leões movem-se lentos no granito polido.
- Cecília, a criança?
- Crescendo.
Uma mulher de cabelos grisalhos, deitada, observa-nos. O rosto e os cabelos de Cecília com cinqüenta anos. Amo-a? Sim. O meu amor por Cecília sobrepassa o seu brilho carnal. Inclui, durável - e transformado - a sua decadência, estendendo-se a limites do tempo que ela desconhece.
- Desapareceu um revólver do chalé. Foi você?
- Estamos ligados, Abel. Para o bem ou para o mal. Eu não faria isso.
Aspiro o ar pela boca - o ar recende a leões - e olho-a de face. Riscam-me os seus olhos de fogo.
- Cecília, eu vim buscá-la.
Estremecem as paredes do chalé com uma alegria diferente da que o Tesoureiro, ainda confiante, anima e preside. As pastoras, vibrando os pandeirinhos enfeitados com fitas coloridas, cantam na sala. Seus pés e o grande laço vermelho e azul nos cabelos da Diana marcam o ritmo do canto. Modesto Canabarro, a barba branca, ginga à frente da orquestra que vem pelo alpendre. Dirige-se a Gorda para Cecília, beija-a no rosto, chorando de alegria e faz questão de tomar a sua mala. O gataco corre nos seus peitos, salta para o meu ombro, passa para os ombros de Cecília, acompanha-nos, sobe outra vez pelas ancas da Gorda. Os pobres e encardidos homens da orquestra DEIXA FALAR, descalços, entram conosco. O cheiro de suor mescla-se ao perfume das laranjas maduras e dos lírios. Ecoam, ensurdecedores, nas salas e quartos da casa, os instrumentos e as quatorze vozes agudas das meninas. Irrompe o carneiro entre seus vestidos longos. O gataco precipita-se dos cabelos da Gorda e corre para Modesto Francisco das Chagas Canabarro. Eis-nos: o Velho com os joelhos dobrados, a cauda do fraque voltada para um lado e o gataco dentro da cartola, os músicos sustentando o trombone, o bombo, o clarinete, o pistão, o bombardino, as dançarinas estáticas, mãos a ponto de ferir os pandeiros, a Gorda conduzindo a exígua bagagem de Cecília, Cecília entre os músicos, de costas, porém com o rosto voltado para mim, rindo sobre o ombro e eu meio curvado, como quem fosse prender o carneiro nos braços. Sou arrancado da cama, pela madrugada, com a notícia: minha mulher e o tiro no ouvido. Morta? Sim. A luz, matinal, infiltra-se através das bandeiras; delineiam-se, nas cortinas, caçadores e caça. Revelar e revolver, sempre, o que um homem tem de podre: inquietante aptidão. A quem atinge, na verdade, o tiro? No fundo, Abel, desejas que eu morra. Pois bem, assim seja. Um balaço no ouvido. Estoura a voz da Gorda: "Matou-se porque quis." Certo. Morta, porém, consegue provocar em mim esta alegria suja. Injeta para sempre um elemento predatório, um pus, no sangue dos meus dias com Cecília. Cecília surge, curva-se e apóia a cabeça em meus joelhos. Estou sentado. Onde? Os irmãos, agora, certamente acomodam-se. A voz da Gorda e os seus passos agitados. Eu desejava essa morte. Sim, isto. Seja como for, tudo se define. Desposarei Cecília. Mas estou ciente, enquanto assim decido, do quanto há de precário e duvidoso nesta solução absurdamente desejada e de súbito possível. Possível. Não é mais, porém, o que eu desejava. Assume agora a forma de um combate, raivoso e inútil, contra um ser intangível, situado além do círculo dos vivos e portanto imune. Redes armadas perto da cisterna, à sombra das mangueiras. Meu pai, sempre em silêncio, permanece a nosso lado. Move-se de leve e pisa cauteloso, o olho cego. Amarra-o a convicção de não ter direito a nada e de ser legítima a fraude de existir. Nas copas das mangueiras, tocadas pelos ventos litorâneos, surge a folhagem nova, cor de vinho. Leio para Cecília o conto concluído, representação talvez do mundo que conheço e onde velhas vozes - inclusive em mim - buscam impor verdades cuja substância esgotou-se para sempre. Minha mãe varre o chão em redor das redes. Vozes de gansos e de galos erguem-se em outros quintais sossegados. Dormimos ouvindo isto e o rumor do mar forte ou distante, segundo as marés. Passeios à noite, a Lua pascal e a Lua de maio brilham e morrem sobre as ruas ladeirosas de Olinda, com rapazes e moças sentados nas calçadas, Alto da Sé, a visão do Recife iluminado, Cecília aperta a minha mão e ri. (Sobem os leões nos telhados, movendo as caudas.) Jarros com flores, arranjados pela Gorda, aparecem no quarto. Entes, do corpo de Cecília, deslizam para o meu quando estamos abraçados. Pessoas a quem ela houvesse conhecido, lembranças, das quais falasse e que assim, aos poucos, me povoassem, sorrateiras, na escuridão. Forma-se, com o embrião no ventre de Cecília, outro embrião de gestação mais curta, um embrião que nos envolve, que nos faz luminosos, mais leves, ferozes, desdenhosos, maiores e sua plenitude tem de coincidir com o minuto preciso do desfecho. Como se chama? Aleluia? Glória? Exultação? Tem nome? Ergue, dos nossos ombros, o peso do mundo e quase não notamos quando os jornais voltam enfim a circular, depois de três semanas de greve. Os sonos, fundos, lembram vigílias festivas. Circula o sangue nas veias com um rumor de cascavéis. Respiramos? Enchem-se os pulmões de madressilvas, de vidrilhos e de penas de pavão. O chão onde pisamos nos é familiar. Contempla, Abel, a gêmea que o amor, como a ti, favorece. Frui, enquanto podes, seus movimentos, a curva bombeada dos ombros, sua voz, sua firme e severa doçura. O embrião não alcançou ainda seu pleno desenvolvimento. Existe a luz do Sol, existem as pedras, o cavalo, a carroça, existimos nós. Falta, porém, o encontro, a junção. Tudo, nos vazios do tempo, empurrado pelas correntes do tempo, os fios que eu poderia ter embaraçado, cortado, na noite em que estou junto à cisterna, pronto para mergulhar e morrer, tudo se tece e encontra. O embrião sem nome alcança a plenitude. Sem nada suspeitar, chegamos ao ápice. A areia da praia, o mar calmo e as palmeiras imóveis refletem o céu vermelho. Pela primeira vez no ano, Sol e Lua, ainda oculto o Sol e nova a Lua, passeiam juntos, em seus cursos separados, sobre o campo dúplice de Gêmeos. Ninguém, até onde o olhar alcança, senão eu, Cecília e o cordeiro. Vamos abraçados, ao longo da praia, ela num vestido de algodão um pouco desbotado, onde restam as folhas verde-pálido: o uso, uma espécie de outono, cresta as flores amarelas. Já percebo, em Cecília, uma alteração entre o ventre e os seios altos, e as marcas dos seus pés as primeiras do dia, com as do cordeiro e as minhas - na areia sangüínea e cheirando a sargaço vão um pouco mais fundo. O espoucar da espuma. Um dorso de animal, extenso, também avermelhado e espelhando a luz do amanhecer, avança lentamente, corta as águas. Pássaros vêm de longe e pousam sobre ele. Às vagas mais fortes, eu e Cecília corremos, rindo, fingindo recear que nos alcancem e molhem os tornozelos. Salta o cordeiro balando e as marias-farinha, translúcidas, fogem entre os nossos pés, escondem-se. O rosto sorridente de Cecília, com os vergões do travesseiro e ainda cheirando a macela-do-campo. Nada comemos; nem lavamos as bocas. Sua língua sabe a despertar, a jejum, a pão ázimo - e o ar salgado, leve, insinuase entre os nossos dentes. Digo a Cecília, agora, o que ela me confia uma noite de chuva, ao lado do canal. Morrer, neste momento, não me seria difícil e não teria importância. Cecília, pródiga, permite-me gozar, em poucas semanas, sem medida e sem pausa, a plenitude que o homem só recebe em parcelas e, mesmo quando pouco castigado, diluída ao longo da existência. Dispensa-me com parcialidade os bens a seu alcance, fazendo-me beneficiário tão-só da parte venturosa e favorável de anos (de quantos?), e põe-me a salvo da outra, da negativa. Poupa-me os podres, os escuros, os amargos, os ásperos, os áridos. Sim, o embrião que a ambos nos envolve está maduro e eu sigo ao lado de Cecília na certeza de que somos mais fortes do que tudo, protegidos - pelo amor, pelo júbilo contra toda espécie de engano, imprevisto, emboscada, armadilha, queda (tão errado lemos, instruídos que somos com letras enganosas). À distância, rede lançada na cisterna do mundo, surge, vindo ao longo da praia, um cavalo puxando um cabriolé descoberto. À minha espádua, ouço uma voz que me chama, desconhecida. Volto-me: meu pai, pela única vez, dirige-me a palavra. Sorrio para ele, que guarda distância, tímido. Continuo o passeio. Ouço, de permeio com o rumor das ondas, o bater surdo e ainda distante, mas não muito, das patas do cavalo. O cavalo aproxima-se a passo e o cocheiro parece não ter pressa. As rodas vão desenhando na areia, lentas, dois sulcos paralelos. Habitantes de Cecília agora nos rodeiam, felizes e um pouco assustados. Eu estranho a ausência do carneiro, o cabriolé está perto, tornam-se mais espaçados os passos do cavalo. Cecília vê primeiro: "Olhe, Abel, o cavalo vem só, puxando o cabriolé". Neste momento, a quinze ou vinte metros de nós, o animal se detém. Quando a rede fica presa no fundo da cisterna, adivinho de quem são as mãos que atuam sob as águas, na treva. Aqui, ao lado de Cecília, à luz do dia que começa, inebriado, cumulado de bens, convicto da nossa imunidade e desdenhoso da Morte, do seu raivoso poder anulador, como pressentir, neste veículo sem guia, a presença da Mulher com um lado do rosto esvaziado? Tomo Cecília pela mão, ajudo-a a subir e novo, eu próprio, as rédeas. O cavalo ergue a cabeça e nos conduz para o fim. Cecília, no seu vestido de algodão, sorri sob o chapéu de palha, os pés manchados de areia. Vai Cecília a meu lado, e seu corpo, essa memória, vibra. O cavalo segue, dócil, há pintas de sol no rosto de Cecília, ela segura meu braço e olha para tudo, para o céu azul, para o mar de cobre, para os peixes que perpassam na transparência das ondas, para as ancas do cavalo, para a sombra nossa na areia, ri e beija-me, o rosto fulgurante e todo o corpo inundado por uma alegria que jamais externou de um modo tão pleno e evidente. Reveste-a uma fulguração que me cega e até as folhas do estampado, as flores amarelas, parecem recuperar a nitidez e a cor primitivas. Cecília esplende mais que este amanhecer de maio. Vamos pela praia dos Milagres e as rodas do cabriolé encontram a cada volta pedaços de paredes meio enterrados na areia, restos de portas ou de vigas, lajes quebradas, ferragens. As grandes pedras amontoadas ao longo da costa para deter o martelar constante e cada vez mais mordente das ondas vão sendo vencidas pelas águas. Mas as águas são verdes sob a manhã e o céu azul já não entra pelas janelas dessas moradias destruídas: inunda, com a sua luz, os cubos antes formados pelas paredes em pó. Descemos do cabriolé. Andamos sobre as pedras, dedos enlaçados, entre os restos de salas e de quartos (onde muitos casais certamente se amaram e semelhantes àquele onde a Gorda nos hospeda, com seus odores de frutas e um leão à janela), vagamente atingidos por essa advertência das coisas. De súbito, a um só movimento, assaltados pela noção exaltante da nossa existência e dos dons que trazemos, voltamo-nos um para o outro e abraçamo-nos. O rosto de Cecília arde e também os seus olhos ligeiramente oblíquos. Subimos novamente no cabriolé. A mão que vai tomar as rédeas do animal e fazê-lo recuar em direção ao aclive de pedras, postas à ribamar para deter as águas, é a mesma - pérfida e desta vez mais ativa - que segura no fundo da cisterna a rede. O cavalo recua. Tento instigá-lo a avançar, ele recua ainda, devagar. Cecília assusta-se, o cavalo, sempre andando para trás, empurra o carro em direção à armadilha, ao precipício, e de súbito não pode mais com o peso. A roda esquerda perde o apoio, arrasta-nos, suga-nos, é tudo violento, rápido e tumultuoso, grito para Cecília, meu corpo salta e insere-se entre pedras. Ouço o rolar, sobre mim, do carro e do cavalo, um trovão duro, frio, rodeado de dentes e de garras de aço, um ser redondo, ventoso, feito cem leões e tão luminoso que me acende por dentro, batendo no chão, nas pedras molhadas, longamente, crestando-as, lanhando-me as costas, onde está Cecília? O cavalo, preso nos varais do carro, luta para levantar-se. Cecília, imóvel, uma das pernas presa sob o pescoço torcido do animal. As ondas alcançam-na e também molham o cavalo. Grito, em vão, o nome de Cecília e desço as pedras. Ninguém a quem pedir ajuda. Cecília, lívida, ferida, sangue no nariz e na boca, olhos abertos, o vestido em pedaços. Impossível tirá-la de sob o cavalo, que continua lutando, as veias do pescoço encordoadas. Afrouxo os arreios, ele soergue o corpo e eu carrego Cecília, inerte, para cima, sob a luz do Sol mais alto, deito-a sobre a areia. Os olhos tão luminosos, abertos, baços, sem nada refletir. Movimento algum. Respira? Um salto de peixe. Necessário salvá-la, salvá-la para mim e para outras manhãs iguais a esta. Olho em redor. Ninguém, ainda. O vento tange para longe o chapéu. Tomo entre as mãos o seu rosto, os olhos sempre abertos, indiferentes à luz. Tu e a rede, Abel. Por que não mergulhas? Urros apagados de leões. Chamo-a ainda uma vez, mas este chamado já é pobre de convicção, embora eu não queira, não possa admitir que Cecília, macho-fêmea, força e compaixão, doadora e beneficiária, Cecília, esteja morta. De súbito, atravesso um pórtico, um limite (ouço as vozes dos irmãos, os sons dos seus instrumentos) - e aceito, fendido da cabeça ao calcanhar pela visão da minha fraqueza absoluta, aceito a verdade, resignado, como os privados dos bens vagos e concretos da Terra, amoldo-me à verdade e começo a viver no mundo sem Cecília. Puta que pariu. Nada. Na cortina do quarto, o Leão morde e parte a Lua. O cavalo, ainda atrelado, debate-se nas pedras. Mundo filho da puta. O corpo de Cecília libera os seus entes: enfermos e famintos, gente sem vez, que a sua compaixão - também morta - procura resgatar. Rodeia a Terra um hálito hediondo de peidos, de cus arrombados e sujos. Estou ajoelhado ante o corpo sem vida de Cecília (adeus, tardes felizes e filho que não tenho!) e sondo os seus arcanos, sua prodigiosa substância. Um círculo de papas, nus, as mitras inclinadas sobre um poço, os sedenhos voltados para o Sol, vomitam no abismo. A vida: merda e breu. A grande roda, com seus inúmeros guizos, enferrujada e com fitas de crepe voando entre os raios, sai do mar e vem girando em minha direção. Futuro e sonho, certeza e segurança, projetos engendrados na inciência, fodam-se. Esfarrapados, doentes, trôpegos (surgem de onde?), deixam o corpo de Cecília como quem deixa uma cidade empestada. Uma nuvem de pássaros escuros, vindos do mar e multiplicando-se nos ares, cobre por um momento o Sol e uma noite breve, ilusória, escurece a praia e o mar. Freiras centenárias, de hábitos arregaçados, enfiam lixo e bosta nas tabacas sangrentas. Um velho, de cócoras, se esporra na mão. Estou ante Cecília e no seu âmago. A roda passa por mim, refazendo o trajeto da tarde jubilosa em que Cecília e eu, com o pastoril, seguimos de mãos dadas pela praia. Mordo os ovos do engano e cuspo-os, mastigados. Porra! Santas velhas, de chifres nos peitos, os brancos pentelhos negrejando de chatos, trepam com jumentos, com bodes, urrando orações negras. As pastoras, enrugadas, sujas, batem pandeiros feitos com couro de culhões, as bocas arrolhadas com caralhos. Destino puto e amargo. Todos se vão. Numa trilha, a passo, de costas para mim, vai o cavaleiro solitário, assoviando. Entra numa zona sombria. Onde as criaturas de números na testa? Não os vejo e os entes desvairados já não estão por perto. Sugue outra vez o mundo a imensa boceta que o pariu. Os dentros de Cecília estão vazios e as ondas vão arrastando para o mar o cavalo atrelado. O mar devora o lugar onde Cecília morre. Ao longe, dois vultos aproximam-se correndo. Meu pai, de pé a meu lado, espera por mim. Percebe, afinal, que não irei, faz um gesto e afasta-se. Para onde, não sei. Levanto-me, olho em redor, vejo-me só. Então, fico de quatro pés, ponho a testa no chão, enfio os dedos nas beiradas do sedenho, e brado, cago, brado, clamo para o mundo, puto, soluçando, puto da vida, falo pelo rabo, blasfemo pelo rabo, entre os dentes do cú que a terra come, cago no chão com a boca, todo eu me transformo no esgoto do verbo, cagando palavras mortas, cascas de palavras, dentro da morta, nem eu próprio as reconheço, estranhas, falar é nada e ninguém mais me ouve, eu não me ouço, ninguém mais, ninguém. O mar bate nas pedras.

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