UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R15]

Fechada a janela e acesa sobre a cômoda uma vela, evolui o relato de , mutilado e nem sempre compreensível, dentro da madrugada, misturado com o som das ondas, o cantar esparso dos galos, o vôo interminável dos pássaros noturnos e o cheiro dos lençóis, que recendem a folhas de canela. Move-se a chama aos movimentos mais vivos de e a sombra do seu corpo, agitada, faz rangerem as tábuas. As flores do quimono sempre aberto recuperam o viço e entre a pele de e o espaço que a envolve é como se houvesse um leve pêlo intocável e transparente, matéria sem nome, luz e carne, uma gradação misteriosa. Alguém, tudo podendo e não podendo descrever-se, (assume um disfarce, o de emissário de si próprio, visitando-nos e habitando entre nós. Um modo imperfeito e difícil como todos, de falar; discurso no qual se explica. O emissário, constituído da mesma substância de quem o molda e manda, é como se unisse, na sua natureza híbrida, a Lâmpada Superfície Polida e o Reflexo. Como se chamam este emissário visível e este mandante oculto? sentada na cama e eu meio estendido, apoiado sobre os travesseiros: o seu perfil recortado contra a chama, os lábios meios abertos e silentes. A cor e o brilho vívido do castiçal, atenuados, ressoam nos cabelos desfeitos. A princípio, suponho que a lividez do rosto anuncia alguma confissão mais aviltante. Mas o que se esbate nesse perfil meio inclinado é a opacidade (contra a luz, não poderia ver se empalidece), perpassa na sua carne e ossos, fugitiva, uma transparência idêntica a das uvas claras, no âmago das quais entrevemos a sombra das sementes, outro rosto, gêmeo, olha-me através das suas têmporas e não me fala, todos estamos em silêncio, mas do silêncio em que está encerrado é como se dissesse: ouve-me. Apaga-se a visão no instante preciso em que também o rosto não oculto se volta para mim e ágeis sinais - claros sinais e sombrios sinais - surgem a altura do colo, sinuosos e velozes, somem na fronte ou entre os seios, enxame exasperado de insetos, negros e brancos, miúdos. Prende-me o pulso (a temperatura dos anéis) e com a mão direita afaga-me o rosto. Curva-se, pousa a testa sobre a minha e um peito, insinuando-se entre as flores do quimono, esmaga-se, peso tépido e fragrante, contra a minha pele, tornada sensível como se eu fosse de línguas. - Abro as mãos ante os olhos no âmago da noite e não as vejo. Crio um casulo de trevas. Questiono o meu ofício de escrever em face da opressão. Fico ouvindo a resposta que se forma no ponto mais protegido e inviolado do meu corpo. A máquina da opressão alcança-me através das paredes e da carne. Todos os seus guardas e artífices dormem, todos — rodeados de arames, casamatas e armas, e ela, a máquina, opera. Máquina ou cão? Não há modo algum de escapar ao seu hálito. - Poucos tratados médicos ocupam-se do Iólipo. Isto, creio, favorece a inconsciência dos pais. Quase sempre, só se apercebem de que trouxeram ao mundo uma singularidade quando a criança chega aos doze ou treze anos. Pormenor absolutamente inexplicável: não há Iólipos do sexo feminino. Todos são machos. Sua testa sobre a minha, ela no centro do quarto e a sombra na parede, a boca entreaberta sobre a minha boca, o seu perfil contra a chama e os olhos secretos fitando-me da têmpora. Eclipse, transparência, trevas. Aos poucos, eis que ressurgem da ausência, uma e outra, ambas tensas de drásticos contrastes nem sempre discerníveis, ambas dúplices, e, mais do que dúplices, acima de medidas e limites, ressurgem as duas mulheres a quem amo em pontos afastados dos anos e do mundo, que me atravessam, as quais me confio, que em dado momento concentram e assumem minhas obsessões, trituro entre os molares os seus nomes e os dois nomes como que se fundern, o primeiro nome: claridade constante, maré resplendente, Roos, cardume de fogos, o segundo: Cecília, guarnecida de virilidade, essas a quem amo e ante as quais, humilde e assombrado, subvejo a face - cheia de vozes e signos — do mundo, eis que ressurgem. Introduzo as primeiras alusões, difíceis e abafadas, entre as pausas de e a língua se contorce quando falo. Ouve -me? As luzes apagadas no carrossel imóvel e nas barracas, as ondas se desfazem e as nossas vozes confundem-se, solenes e inflamadas, boca contra boca, a verdade rangendo em nossos dentes, sem artifícios e também sem capciosa ênfase. - Dos doze para os treze anos, o rosto do Iólipo começa a ser visível no escuro. Qualquer um pode vê-lo nessas condições. Até ele. - A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos. Capaz de muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho que descobre as carcaças podres. - Nem todos enxergam o Iólipo na escuridão com a mesma nitidez. Alguns percebem apenas um halo muito leve; outros o distinguem com um relevo de xilogravura. Convivemos todos os dias com as narrativas escritas e isto esconde o seu mistério. Uma viagem está no texto, íntegra: partida, percurso e chegada. Nele, há o ir e o estar, isto é, coincidem o fluxo e a permanência. - O rosto que se pode ver na escuridão, completamente diverso do que se vê na claridade, é o rosto verdadeiro do lólipo. - Sei bem: há, tem havido outros males na Terra, sempre e inúmeros. A opressão, fenômeno tendente a legitimar muitos outros males e em geral os mais prósperos, reduz a palavra a uma presa de guerra, parte do território invadido. Lida o escritor, na opressão, com um bem confiscado. Surge no teto uma grande mariposa de asas negras, outras duas na porta. A vela se extingue. Não me movo e continuo despido, embora esfriasse com a madrugada e rápidos golpes de vento façam gemer a aldrava da janela. Falarei em vão? Ambas, Roos e Cecilia, não me ouvem em , foz e confluência? A estrangeira, oscilante entre as fronteiras do ir e do vir, surpreendente nas edificações de seus espaços tangíveis e fantásticos, cheios de torres, de pássaros, de peixes, de animais rasteiros e bandeiras hasteadas, a estrangeira, esquiva e luminosa (voltam-se as plantas na direção do seu rosto), a frágil e povoada andrógina a quem amo, que se desnuda, múltipla, ante a janela aberta para as vertiginosas tardes nordestinas de estio, pesadas de perfumes, de azul e do zumbir das moscas, essas mulheres tão fundamente amadas que se incorporam para sempre ao mundo, são no mundo uma poeira e um som, eis que as vejo sob uma perspectiva inesperada e que nem assim me espanta. Serias, Roos, em tua flutuação entre o ir e o vir, uma versão mais sutil e antecipadora das oposições de Cecília? Não corresponde à claridade que é um dos teus dons — como a noite corresponde ao dia e a morte ao nascimento — certa constante de negror, associada, desde o eclipse, a presença de ? Além do mais, ignoro como e até que ponto, repercutes, recôndita, não sei até que ponto, nas simetrias, nos ritmos. Tendo a crer, Cecília, que a duplicidade do teu ser coberto de cifras ressurge em , neste caso um ser tríplice, dual e uno, e também pergunto agora se não ouço, por vezes, tua voz na sua boca. Jamais diria, entretanto, serdes fragmentos ou simples tentativas inconclusas desta que, ainda não sei como, vos revive. Sendo, cada uma, absoluta e por assim dizer ilimitada, nenhuma é tudo. Íntegras, não constituem, apesar disto, realidades solitárias: na sua integridade, unem-se em um todo — soma e súmula de totalidades — não superior ou mais perfeito do que as unidades abrangidas. - O verdadeiro rosto do Iólipo nao é necessariamente horrível. Alguns, na escuridão, apresentam um rosto de linhas mais puras que o de carne, o diurno, o que todos conhecern. O que apavora não é o aspecto monstruoso do rosto; e sim o fato de que se trata de um rosto diferente, oculto a nossos olhos quando iluminado e que se revela justamente quando não existe nenhuma claridade que não seja a dele.

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