UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R22]
Desarma-se o equilíbrio: ressurge o Sol - um nada - e o espaço inteiro, abalado, estremece. Lenta e em ondas tão nítidas que o céu parece desmontar-
se, a luz desce do alto, do disco lunar deslocado: incontáveis anéis concêntricos e autônomos, deslumbrantes alternâncias de reflexos e de azuis ainda noturnos,
pesado relâmpago espiralado ou circular, originado no zênite, aceso no zênite. Antes que o primeiro pássaro, alertado pela percussão da luz no mundo, voe ou
cante, antes que nos alcance o grito unânime da cidade, antes mesmo que e eu gritemos, antes que alguém grite, eu, transgredindo um espaço selado,
abarco e aceito, à reveladora claridade desse relâmpago regirante que rompe - unindo-o em seguida - o véu das coisas, restringindo, creio, a minha insciência,
abarco, peso e aceito duas verdades ligadas à essência de e do mundo. No momento em que, golpeado e destruído o efêmero simulacro de noite, ressoa o
espaço, empalidecem o azul e os astros, anula-os uma transparência fugaz e eu vejo o verdadeiro céu - ou um dos céus existentes, em geral inacessíveis, quem
saberá por que, à nossa privação. Menos belo e confortável que o céu de nuvens, planetas e quazares - e simultaneamente mais perturbador -, essa fase veloz e
ofuscante do eclipse descobre um céu lavrado pelo uso, sólido, evocando, na cor e na penúria, eu diria mesmo na textura, um velho muro riscado ou uma porta de
privada, com os seus desenhos e inscrições. Nada traduzo do que no alto descortino.
A profusão de signos, visíveis de alto a baixo, alguns sangüíneos, poucos em outras cores e quase todos como gravados a fogo, atesta a procedência
das sondagens e convicções dos homens, sempre induzidos a recortar em zonas, casas, mansões, quadrantes e círculos a vastidão estelar, povoando-a de
deuses, animais e veículos. Como saber, porém, se o que vejo são vestígios do sobressalto humano, ou se a escrita nesse muro demarca a nossa passagem, ou
ainda se as letras e figuras - geométricas, fabulosas e domésticas - nele sobrepostas nunca foram traçadas, desde sempre estão, para sempre estão, consistindo
o trabalho dos homens em ver (com que olhos?) e deslindar, na superfície velada que contemplam, algumas das possíveis armações que os sustentam e os
salvam do desamparo em que nascem?
Natividade, apertando o dinheiro no bolso do vestido e procurando entender, pára no meio da escada. Quantas vezes sobe esses degraus e outros, o
escritório muda tanto de endereço, para resgatar as infindáveis prestações do seu sonho, o terreno ermo e ladeiroso nos confins da zona Norte, a quase um
quilômetro das linhas de ônibus e inundado na época das chuvas? Cento e sessenta ou mais, sim, não sabe ao certo, precisa ver, faltariam menos de dois anos
para o final da compra. Aceitar que homens tão sinceros a iludissem, vendendo a pessoas diferentes as mesmas quadras do chão? Doze ou treze anos de
palavras sem fundo! Pecadores. Fogem, ainda por cima, os irmãos de Judas. Comprar outro terreno? Foram-se os tempos, anda à beira dos setenta e agora se
conforme, louca, não comece mais nada, tudo urgente e breve, acaba o dia, reze o Credo e o Ato de Contrição. Quanto antes. Os pais do oficial marcham de
braços dados entre os renques de ciprestes. "Ótima empregada." "Sempre dócil." "Merece o túmulo da família". A mãe, obesa, anda a passos de cágado para não
cair, move com dificuldade a cabeça e os olhos míopes são dois ânus. A bengala do pai fere o asfalto rachado. Vôos rasteiros e breves dos pardais entre os
túmulos. Os seis soldados, suas sombras e a sombra do caixão. "Obediente". A voz de Natividade, vindo e vindo, de numerosas tardes, vindo, plácida, vozes, o
cheiro de vinagre e o rumor calmo dos bilros, cinerárias e rosas queimadas pelo Sol, rumor de passos nas sendas e o céu uma flor com doze pétalas, agosto à esquerda, fevereiro à direita e à frente novembro.
Os filhos assistem à passagem do enterro e só o olhar da puta é de ódio. Escavadeiras
amarelas trabalham perto do muro, caminhões descarregam madeira e ferro, ouvem-se as vozes e os risos brutos dos homens, o bate-estacas abala o meio-dia e as serras mecânicas zunem. O Ser, esfomeado, morde os dentes com um tinir de esporas e contorce a volta, ido. Natividade ergue as mãos e observa, a voz pastosa, a língua meio presa pela costura da morte: "Já morri e estou cheirando a vivos. Água para todos!" Jamais acreditou, realmente, que chegasse a possuir um pedaço de terra. Ludibriada, não se queixa e acaba por dizer, trancada no seu quarto sem ventilação, que afinal de contas o terreno enxarcado e ladeiroso é seu, não de todo, mas em parte, sim, pagou muito por ele e ainda há justiça neste mundo, alguém há de vir, dar-lhe o que foi comprado, alguns palmos da Terra.
Paciência. Alguém.
- Dentro de mim ou dentro da noite, procuro ouvir as respostas. Não pretendo ser limpo: estou sujo e sufocado, nos intestinos de um cão. Angustia-me, claro, reconhecer que a sombra da opressão infiltra-se nas minhas armações e envenena-as. Por outro lado, isto me causa uma espécie de alegria negra. Que se salve, das tripas, o que pode ser salvo - mas com o seu cheiro de podridão.
Os coveiros vão fechando a parede do jazigo. Painéis de paredes a prumo e alinhados; fiadas em nível; juntas de argamassa cheias: eis as três normas para assentamento perfeito dos tijolos. Não obedecidas, tem-se de aumentar a espessura da massa entre as fiadas e a do revestimento para acertar as paredes. Avultam, neste caso, os custos da obra.
A mulher do oficial, sempre retraída, sustendo ainda o ramo de malmequeres, a mão crispada e um pouco para trás, como quem traz uma pedra para atirar num cachorro, observa a operação, a ponto de ceder, de aderir à cena (o homem e os velhos choram sem mover-se), mas protestando - os lábios meio abertos - que alguém deve abster-se de chorar pela negra e desvalida, sepultada com honras de parenta no jazigo da família:
"Nunca sentou-se à mesa com eles", sim, alguém deve recusar o jogo magnânimo, circunstancial e vão, ser o corpo de Natividade, assumir a sua raiva ou irar-se no seu lugar, não ver quitação na condescendência, não incorrer no engano de medir um modo de ser pelos momentos em que é interrompido e substituído, como agora, por outro, ritual e passageiro. "A vida é pesada no dia a dia e esta hora não quita coisa alguma. Nada. Nada. Nada."
Um fogo queima os braços de Natividade, queima ombros e peitos e as mãos resistem, soltas, a carne avançando nas unhas. "Vou ser recebida'" Erige-se, perto, um alto andaime cilíndrico.
Os operários movem-se num mundo de tratores, compressores, tábuas, betoneiras rotativas, bombas centrífugas e auto-aspirantes, motoniveladoras, serras zumbidoras, tijolos, cal, guindastes - e a Torre avulta, cônica, oca. Ora. Colocados os bilros no devido lugar, cruzam-se na ordem indicada pelo risco os fios neles enrolados. Variados são os cruzamentos; e o número de bilros corresponde em geral à complexidade da renda. Então.
Reduz-se, pequeno limão seco, o estômago vazio de Natividade. Assim. Fígado e baço desfazem-se em vorazes lagartas negras. O pulmão dilui-se, papel úmido e usado, sujo. Pois. A saber. Uma serpente insinua-se por entre as cinerárias, penetra no caixão e morde - como um cão morde um osso - o coração assustado e poeirento da morta.
Os operários interrompem a construção da Torre. Então. Assim sendo. Afinal.
Filtram-se, através do Filho, Ele (quem?) e o seu Tempo. Tudo Ele pode e não pode descrever-se. Tentasse e a descrição tudo romperia, transcenderia tudo, tudo esmagaria e a duração dos reinos não comportaria o seu discurso, chamas estourando e mordendo-se, rolando sobre as coisas, nós um reflexo atravessado e apagado por velozes pássaros vermelhos, reflexo no muro, voam reflexo e muro e curvo o casco urdido rãorrerrão o verbo contorcido hic cede a sintaxe velho barril aros quebrados.
Sob o mesmo relâmpago vertiginoso que descama o muro celeste, num olhar tão unificador que ela e o espaço transtornado pelos círculos concêntricos e ondeantes parecem-me idênticos, faces de uma só verdade ou realidade encobertas, surpreendo a substância de . Desnuda-a a efêmera transparência que tudo subverte e dois seres super postos fitam-me, plenos de complacência ou de amor, ela e ela, coincidentes, uma incrustada na outra, entranhada na outra, rodeadas de mariposas imóveis, a mesma pessoa e no entanto pessoas diferentes, uma exterior e uma oculta, nascida e ainda embrionária esta, silenciosa dentro da mulher que fala, os lábios meio abertos como os da mulher que fala, órbitas dentro das órbitas de quem sempre a encobre, os peitos menores, as cabeleiras confundidas e o mesmo rosto, talvez mais radioso.
Menos insciente e tão modificado, no curso desse rápido instante, como o firmamento e a cidade, antes imersos na atmosfera noturna e agora embebidos numa espécie de aurora lívida, ouço mover-se um pássaro entre os ramos da árvore: defronto, ouvindo-o, a mulher e o céu de sempre, cândidos, novamente acobertando, sob aparências reais e assim mesmo truncadas, suas identidades secretas. Canários ainda imprecisos novas réstias cruzam o ar ladra o chão matinal o Sol multiplicado um galo refletindo-se nas casas canta sob pedras um cachorro breve muitas estrelas ressurgem chão e casas perdem a intensidade esvai-se com o retorno do Sol árvore da noite novas réstias curvas - o Sol multiplicado - refletem-se nas pedras sob a árvore, canários cruzam o ar, um galo canta matinal, ladra um cachorro e chão e casas, ainda imprecisos, ressurgem da noite breve, muitas estrelas perdem a intensidade, esvai-se com o retorno do Sol, crescente ainda fino, o núcleo central da mancha escura ao longo da divisa, na coxilha povoada de rebanhos, de carneiros e de bois atordoados, as garças afastam as asas, ouço vozes indistintas de adultos e meninos vindas das ruas próximas ou dos corpos de , mariposas feridas pela passagem da pesada ave do eclipse e pela volta do Sol debatem-se no calçamento e no ar
em redor dos corpos de , do corpo tangível e do corpo que, oculto como o céu das profusas imagens, números, letras e riscos, contempla-me de dentro de si mesma.
Ornado com leões vermelhos e discos violáceos, pousa um K sobre o Viaduto do Chá, as pernas laterais voltadas para baixo, formando um ângulo que abrange em toda a extensão - do Othon Palace Hotel aos escritórios da Light - a larga e bruta passagem de concreto. A barra vertical da letra, deitada, equilibra-se no vértice do ângulo como sobre uma pirâmide de vidro, com seus discos móveis e leões hirtos.
Os pedestres que atravessam em todos os sentidos aterrados como se cruzassem um campo sob disparas cruzado - o nó urbano formado pelo encontro da Avenida São João com o Vale do Anhangabaú, evitando os que vêm em direção contrária, afastando os que lhes embaraçam a corrida, saltando entre os carros que buzinam e aceleram agressivos os motores, gente do Norte e de outros pontos do mundo, todos com espigões na cara, nos ombros, nos joelhos e no dorso das mãos, não parecem notar o Ó que se abre, flor
ou explosão, luminoso, frente ao pardo edifício dos Correios e Telégrafos, refletindo-se nos pequenos vidros quadrados das janelas, um Ó circular e talvez mesmo esférico. Os seus ornatos são as outras letras do alfabeto, soltas ou agrupadas em nomes, uns familiares e outros não, e o que deslumbra nessa vogal são as cores, variadas e vivas. Afasta-se, aos poucos, da fachada dos Correios, rola em direção ao Vale do Anhangabaú, suas cores projetam-se no ar empoeirado e acendem o asfalto. Precedendo o alvo cordeiro que atravessa o viaduto de ferro, a passo lento, visível através dos ornatos curvos e delgados do balaústre, segue-o a figura foi, conseqüência das causas, avançando para dentro, o olho sorrelfo, nem isto nem aquilo, sentença lida no espelho, personagem soslaio e trom.
O rumor emaranhado de sinetas e chocalhos corta o violento ruído dos ônibus, dos táxis, dos gritos, dos passos, dos silvos, dos golpes, como se bois, éguas de carga e cabritos soltos galopassem no Ó
que vai girando, roda sem raios, ao longo do Anhangabaú e no qual também leio (é tempo de ir afinal ao seu encontro) o nome de , escrito com punho firme.
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