UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R8]

Detritos, jogados pelas maretas, batem nas paredes do pequeno cais em T, agora pouco usado pelas canoas de pesca. Nos extremos do espesso paredão correspondente ao traço sobre o qual incide a perpendicular da letra, duas lâmpadas, pendentes de postes delgados e recurvos no alto (girassóis sobre hastes murchas) iluminavam à noite as duas pedras rombas e escuras destinadas a amarrar os barcos. Uma das lâmpadas (um dos girassóis?), a da direita, foi arrancada pelo vento que às vezes sopra com força em Ubatuba. Este acidente atenua a simetria perfeita do cais, brilhante sob a chuva leve. Isola-o um pouco do mundo a névoa pouco espessa que se estende sobre a cidade, a praia e o mar cinzento. - O pai de um iólipo, claro, pode ter filhos com outras mulheres. Isto, em geral, nunca sucede. O iólipo é sempre o filho mais novo ou único. A mãe do iólipo nunca volta a conceber. Natividade ergue as mãos e diz às outras duas velhas: "Façam alguma coisa. Não estão vendo toda essa gente no quarto? Vão buscar água e copos. Eles querem beber. Muita sede." Quatro homens carregam o seu caixão. Quando o Sol, ao meio-dia, escurece, e eu nos abraçamos, invasores de um firmamento ao qual somos estranhos. Asas gigantescas cruzam a escuridão, sobe ao ar o Nike-Apache, o grande ser alado faz zumbir os telhados, agita as árvores, levanta o pó da praça e desliza sobre nós, com o seu canto rouco: pesadas pedras rolando num longo tubo metálico. - Sabedoria alguma, Abel, afasta a convicção de que o corpo estranho está em nós para sempre. Toda a nossa vida encontra aí a sua negação. Voltamo -nos contra a presença intolerável. - O modo exasperado e ostensivo como a opressão venera a Ordem faz-me supor que disfarça uma filiação ao Caos. À direita do T, sentado na pedra sob o poste sem lâmpada, o figurante abrigado num plástico amarelo inflado pelo vento espera que algum peixe venha morder o anzol. Outros vultos pescam no cais, todos silenciosos. As narrativas constituem simulacros de uma ordem que intuímos e da qual somos nostálgicos. - A ordem, para o opressor, é um reflexo degenerado das leis que regem o Cosmos: rigidamente concebida, tende à petrificação. O Sol poente, rubro, reflete-se nas águas da Praia Grande - espada vertical de chamas que, rompida pelas ondas, logo se recompõe. . , com uma touca imitando margaridas, ri, estendendo para os lados as mãos translúcidas e ágeis, quando o mar se quebra à altura dos seus peitos: o maiô vermelho, sob o sol vermelho, empalidece. Damo-nos as mãos e, com as águas tornando imponderáveis os nossos corpos, corremos lado a lado, corremos vagarosos, devagar e sem peso, imitando essas seqüências de cinema nas quais a câmara lenta, arrancando os personagens ao compasso normal de suas vidas, assinala instantes singulares. A lâmina de fogo fragmenta-se na superfície agitada das águas e nascem da espuma flores mais tênues que as de . Corremos de mãos dadas, lentamente, num campo de papoulas e de margaridas efêmeras. Existe o Pai? Nele e em torno dele: um rumor sem silêncios, cortiço ressoante de abelhas, a Eternidade resoando: em torno dele e nele. Abelhas zumbem soando: em torno dele e nele. Abelhas zumbidoras, suspensas - não se movem - em toda a extensão do Tempo e do Mundo. Muito havendo convivido com as águas e à força de ler na superfície, diz o pescador: "Aqui há peixe". Onde? Quantos? Não sabe e o peixe é veloz: não pára ante o anzol e as interrogações. Natividade, viva e morta, vendo apenas o que vemos ou julgamos ver, nós os cheios de trevas, e rompendo com a sua visão já sensível e ligeira os limites das limitações, ergue as mãos entrevadas à altura dos olhos e fala: "Já estou morta. Por que minha carne ainda não secou? Não entendo. Estou cheirando a vivos." As mãos de , bem desenhadas e de palmas largas, sublinham o que diz com gestos rápidos. Ergue-as, por vezes, entre uma frase e outra, afasta os cabelos das têmporas. Assim como se vê, contra o Sol, a sombra fina dos ossos na asa desplumada de um pássaro, acredito descobrir, nas suas mãos erguidas e embebidas na transparência da manhã, outro par de mãos, secreto.

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