UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R19]

- A aceitar que subsista em nós o seixo ou gato podre, preferimos morrer. Viver não nos parece impossível, amargo ou difícil. Você não age contra a vida: inclusive, quer viver. Mas o ódio contra a presença instalada no seu tronco é mais forte do que tudo. O cortejo diminui a marcha e aguarda a abertura do sinal. À direita, vindo de um parque de diversões exíguo, soa rouco e invisível um alto-falante: invade, estridente, as casas de muros muito baixos e onde as folhas das plantas, nas nesgas de jardim, lembram pedaços de sola. Frente às duas barracas de tiro, uma camioneta maltratada e na carroceria um colchão velho. A peroba-rosa (Aspidosperma gomezianum), cortada em retângulo e portanto assentável em desenhos variados, é a mais empregada, dentre as madeiras de lei, como revestimento dos pisos. Dura e resistente ao caruncho, custa menos que as outras, devendo-se também a isto a preferência das firmas construtoras. O oficial do Chrysler percebe um novo acompanhante e nele reconhece o Ser: sem chapéu, a cabeça perpétua e o nariz pouco a pouco, move-se rente às coisas com gestos relativos, voltado para o centro. Uma freira conduz o trabalho das serventes. As serventes desinfetam o quarto e repartem o legado de Natividade - conchas, um rosário, alguns metros de renda envolvida em papel fino. Queimam o resto. Erguem-se, mesmo sem vento, entre a montanha-russa e o carrossel, nuvens lentas de pó, como se o terreno argiloso do Parque fumegasse. Atravessa o cruzamento, ágil, no sentido do regresso, o Ser - costuradas nos lugares as vestes de listas invertidas -, envolve o préstito e volta, os braços fixos, ao ponto triplo. O sexo da morta, nunca tocado ou acordado por mão de homem e duro como nos tempos em que, adolescente, apanha café e algodão, rebenta violado, mancha o capucho branco e meio desfiado que o protege. As duas barracas, enodoadas, cheias de furos que parecem de bala, têm sob o sol intenso qualquer coisa de uma colisão. Aparece um homem por trás da camioneta, vê o carro fúnebre, desliga o alto-falante. A cor súbita do Ser, paralelo à transversal deserta, revela-o: a causa das conseqüências. "O calendário é uma rede no ar, o calendário caça o ar como se existissem borboletas de ar. Veja: o barqueiro segue o rio, da cabeceira à foz. Segue e está presente, no curso da viagem, em todos os pontos do percurso. Pode, em momentos privilegiados, ter a visão simultânea - não da viagem toda: a tanto não alcança - de alguns segmentos da viagem. Incursões". As mãos enluvadas do homem repousam sobre a corneta de chifre. Sei que muitos dos seus ossos são restaurados com placas de metal e que o sangue, obtido através de transfusões, circula em vasos com emendas de náilon. "Eu estou muito bem". Estimuladores eletrônicos regularizam a pressão arterial e mantêm o coração ativo. Traz enxertos no fígado, nos rins, na bexiga, nos pulmões. Parece-me, entretanto, saudável e ainda conservado, embora um tanto hirto e custo a perceber (as cortinas são escuras) a dentadura dupla, o nariz de silicone, um olho de vidro. Armas farão advertência. A mãe observa-me com desprezo, suspeita e exultação a um só tempo. Procuro, inutilmente e talvez sem habilidade, obter informações concretas sobre a idade verdadeira de . "Vejam". O carrilhão da Sé ondula sobre a tarde de domingo e os vidros estremecem nos caixilhos. Por que estou aqui? Vão morrendo as vibrações, vaga que vem e reflui: o realejo, submerso, ressurge. "Então, o senhor está de férias. Conheceu o nosso genro?" "Não". "Ah Sabe? Nunca vamos lá. Saímos pouco". O tapete aos pés da mulher lembra um cachorro com rabugem. As orelhas do homem, vejo, são postiças, os cabelos transplantados, tem uma perna mecânica. Por que as luvas? Com um que de artificial nos gestos, ergue a corneta: "Eu estou muito bem. Vejam". Emudecemos. Ouço os murros dos que chamam, em vários andares do Martinelli, os elevadores decrépitos. - Pode um artista manter-se fiel às indagações que mais intensamente o absorvem e realizar a sua obra, ignorando a surdez e a brutalidade, como se as circunstâncias lhes fossem propícias - a ele e à obra. Talvez se convença de que deste modo a preserva e se resguarda da infecção. Engana-se ou procura enganar? Isto, não sei. Sei que obra e homem, ainda assim, estão contaminados e, o que é mais grave, comprometidos indiretamente com a realidade que aparentam desconhecer. Ele e sua obra resgatam uma anomalia: testemunham (testemunho enganoso, bem entendido) que a expansão, a pureza e a soberania da vida espiritual não são incompatíveis com a opressão, e nos levam mesmo a indagar se esta, além de as admitir, não propicia grandes percursos do espírito. Máquinas poderosas ampliam em todos os sentidos o alcance das sondagens em torno do eclipse. Instrumentos ópticos de várias procedências, instalados no mais denso ponto do oval de sombra, espreitam astros de existência duvidosa. ("Você atira no peito ou corta os pulsos, para que suma o seixo. Preferiria viver e se morre é por acaso".) Uma frota de grandes aviões a jato, emissários da NASA, voando a tal altitude que confinam o imaginário, estudam os círculos solares. Sobre o Peru, a trezentos mil metros dos Andes, num espaço povoado de zurros, esturras e urros sem gargantas, astronautas da Gemini filmam o eclipse e o oval de sombra onde estamos eu e , imóveis, rindo, meio bêbados e com os braços abertos, num retângulo deserto e junto a nós a árvore, um ponto, um grão. O Nike-Apache, equipado com instrumentos eletrônicos, investiga os ventos superiores, acelerados com a sombra e o frio, e a zoologia da alta atmosfera, revelável - como, sob o reagente adequado, um desenho normalmente invisível pela contorcida e misteriosa luz do eclipse. Sós, nesta praça revestida de pedras, quadrangular, as janelas cerradas, de pedras entre as quais o mato cresce, no centro uma árvore mais alta do que todas as casas sem beirais, uma árvore frondosa (réstias solares atravessam-na, peguenos fios recurvos sobre as pedras), entre golpes de vinho mastigamos queijo e pão, a árvore assemelha-se a um carvalho antigo, casas sem beirais, lívidas na luz crepuscular e infestada de mariposas brancas, a árvore um marco na praça, o mato cresce entre as pedras e nós bebemos vinho, sós junto à árvore, entre as mariposas, sós, no quadrado da praça, o Sol gangrenado no zênite, olhamos para a frente e para trás, nós, eu e ela, dez, fora de nós, como se aguardássemos a vinda dos nove coros de anjos, o fim do mundo, a queda das estrelas ou o início de tudo. Caminhões frigoríficos, jamantas transportando cargas de madeira, de sal e grandes lingotes de aço metem-se cunhas - entre os carros do cortejo. Cortejo? Manobrando rente a outros veículos cada vez mais próximos e lentos, o tenente-coronel entrevê - e logo perde-os de vista - o coche fúnebre e os soldados, prestes a cruzar a Ponte das Bandeiras. Os gases lançados pelos mil canos de escape misturam-se ao cheiro grosso e como que viscoso das águas. Natividade ergue as mãos e confessa às duas outras velhas cheia de alegria: "Acreditam? Estou sentindo um perfume de terra. Vou ser recebida! Vou ser recebida por Deus!" A palavra Deus queima a sua boca e ela põe-se a chorar, agitando-se na cama, procurando erguer-se e assentar os cabelos lanosos, certa de estar a caminho de Deus, nos arredores - e talvez até dentro - dos muros do Paraíso, cujo odor é mesmo, tem de ser o mesmo, da terra sobre a qual anda sem rumo certo até que endureçam os joelhos e onde só conhece a servidão, o favor, os disfarces da solidão. Queima-se a cal virgem com água e esta operação não deve ser interrompida, para evitar - conseqüência do resfriamento - que parte do material deteriore. Eventualmente, a simples umidade do ar pode queimar a cal virgem, poupando-se, com isto, água e mão-de-obra. Flutuam ao vento, entre mastros, as bandeiras brancas e vermelhas do Circo Norte-Americano, armado num terreno inculto à esquerda. O homem do Chrysler procura o carro fúnebre entre os caibros, tábuas e lingotes empilhados nas carrocerias. Vê apenas pedestres apressados, outros veículos, as escuras torres quadrangulares aos lados da Ponte das Bandeiras e cartazes da VARIG, sobre os quais grandes e alvos cúmulos vogam lentos. Ovais de grama empoeirada e seca dividem a Avenida Tiradentes, rodeando as agrestes palmeiras de cânhamo-da-china. Os cemitérios têm hoje um ar festivo com os seus visitantes incontáveis e as compras de Natal movimentam as lojas. Natividade não conhece os pais e muito menos os avós, não tem notícia de irmãos, tios, sobrinhos, morre virgem e as ancas enchem-se de rugas sem que um noivo apareça. Todos os anos, ao longo de mais de trinta anos, no dia 2 de novembro, às três horas da tarde, sai sem dizer para onde, compra um ramo de margaridas, entra no primeiro cemitério, procura um túmulo - seja de quem for - abandonado, deposita as flores, reza para um nome, imagina uma afeição, chora em silêncio. Denomina-se pique - ou risco - a reprodução, em papel ou cartolina, dos desenhos sobre os quais se tece a renda. Assemelham-se, com variações, os desenhos tradicionais, a motivos freqüentes na azulejaria portuguesa. Quanto aos azulejos, inspiram-se no mundo e na Geometria. A puta, o bombeiro e o servente de obras rondam o Chrysler. O coldre com o revólver, no assento à direita, tem um cheiro forte de cavalo. O carro funerário dobra à esquerda, violando o gramado no centro da Avenida: o carro militar e o do tenente-coronel seguem-no aos trancos, varam a lona do circo, entram. Natividade e um menino estão sós na arquibancada. A lona azul ondula e entre os mastros as flâmulas. Atravessa o espaço, alto, um turboélice, rumo a aeroportos longínquos. As flâmulas brancas e rubras oscilando. Metódico e sem jamais coincidir, o Ser equilibra-se: por ter os pés entre os dois e nele só existir o lado oposto, há na sua acrobacia qualquer coisa de oculto e incompleto. Arisco, inverte e fica junto, as mãos de fora para dentro, onde. Aplausos, tambores, cornetas e vozes cruzam o oco do circo, desligam-se as chaves dos carros e no silêncio do meio-dia estalam os ossos humilhados da morta, estalam, quebrados por dentes ou instrumentos de ferro. Artistas aparecem, gente de outros países, alguns com sandálias havaianas, por trás dos vestiários bale uma cabra, aproximam-se da morta os pobres domadores e acrobatas estrangeiros, mas os carros dão a volta e partem, acelerando.

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