UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » O Enterro de Natividade [R19]

O cortejo diminui a marcha e aguarda a abertura do sinal. À direita, vindo de um parque de diversões exíguo, soa rouco e invisível um alto-falante: invade, estridente, as casas de muros muito baixos e onde as folhas das plantas, nas nesgas de jardim, lembram pedaços de sola. Frente às duas barracas de tiro, uma camioneta maltratada e na carroceria um colchão velho. A peroba-rosa (Aspidosperma gomezianum), cortada em retângulo e portanto assentável em desenhos variados, é a mais empregada, dentre as madeiras de lei, como revestimento dos pisos. Dura e resistente ao caruncho, custa menos que as outras, devendo-se também a isto a preferência das firmas construtoras. O oficial do Chrysler percebe um novo acompanhante e nele reconhece o Ser: sem chapéu, a cabeça perpétua e o nariz pouco a pouco, move-se rente às coisas com gestos relativos, voltado para o centro. Uma freira conduz o trabalho das serventes. As serventes desinfetam o quarto e repartem o legado de Natividade - conchas, um rosário, alguns metros de renda envolvida em papel fino. Queimam o resto. Erguem-se, mesmo sem vento, entre a montanha-russa e o carrossel, nuvens lentas de pó, como se o terreno argiloso do Parque fumegasse. Atravessa o cruzamento, ágil, no sentido do regresso, o Ser - costuradas nos lugares as vestes de listas invertidas -, envolve o préstito e volta, os braços fixos, ao ponto triplo. O sexo da morta, nunca tocado ou acordado por mão de homem e duro como nos tempos em que, adolescente, apanha café e algodão, rebenta violado, mancha o capucho branco e meio desfiado que o protege. As duas barracas, enodoadas, cheias de furos que parecem de bala, têm sob o sol intenso qualquer coisa de uma colisão. Aparece um homem por trás da camioneta, vê o carro fúnebre, desliga o alto-falante. A cor súbita do Ser, paralelo à transversal deserta, revela-o: a causa das conseqüências.

Caminhões frigoríficos, jamantas transportando cargas de madeira, de sal e grandes lingotes de aço metem-se cunhas - entre os carros do cortejo. Cortejo? Manobrando rente a outros veículos cada vez mais próximos e lentos, o tenente-coronel entrevê - e logo perde-os de vista - o coche fúnebre e os soldados, prestes a cruzar a Ponte das Bandeiras. Os gases lançados pelos mil canos de escape misturam-se ao cheiro grosso e como que viscoso das águas. Natividade ergue as mãos e confessa às duas outras velhas cheia de alegria: "Acreditam? Estou sentindo um perfume de terra. Vou ser recebida! Vou ser recebida por Deus!" A palavra Deus queima a sua boca e ela põe-se a chorar, agitando-se na cama, procurando erguer-se e assentar os cabelos lanosos, certa de estar a caminho de Deus, nos arredores - e talvez até dentro - dos muros do Paraíso, cujo odor é mesmo, tem de ser o mesmo, da terra sobre a qual anda sem rumo certo até que endureçam os joelhos e onde só conhece a servidão, o favor, os disfarces da solidão. Queima-se a cal virgem com água e esta operação não deve ser interrompida, para evitar - conseqüência do resfriamento - que parte do material deteriore. Eventualmente, a simples umidade do ar pode queimar a cal virgem, poupando-se, com isto, água e mão-de-obra. Flutuam ao vento, entre mastros, as bandeiras brancas e vermelhas do Circo Norte-Americano, armado num terreno inculto à esquerda. O homem do Chrysler procura o carro fúnebre entre os caibros, tábuas e lingotes empilhados nas carrocerias. Vê apenas pedestres apressados, outros veículos, as escuras torres quadrangulares aos lados da Ponte das Bandeiras e cartazes da VARIG, sobre os quais grandes e alvos cúmulos vogam lentos. Ovais de grama empoeirada e seca dividem a Avenida Tiradentes, rodeando as agrestes palmeiras de cânhamo-da-china. Os cemitérios têm hoje um ar festivo com os seus visitantes incontáveis e as compras de Natal movimentam as lojas. Natividade não conhece os pais e muito menos os avós, não tem notícia de irmãos, tios, sobrinhos, morre virgem e as ancas enchem-se de rugas sem que um noivo apareça. Todos os anos, ao longo de mais de trinta anos, no dia 2 de novembro, às três horas da tarde, sai sem dizer para onde, compra um ramo de margaridas, entra no primeiro cemitério, procura um túmulo - seja de quem for - abandonado, deposita as flores, reza para um nome, imagina uma afeição, chora em silêncio. Denomina-se pique - ou risco - a reprodução, em papel ou cartolina, dos desenhos sobre os quais se tece a renda. Assemelham-se, com variações, os desenhos tradicionais, a motivos freqüentes na azulejaria portuguesa. Quanto aos azulejos, inspiram-se no mundo e na Geometria. A puta, o bombeiro e o servente de obras rondam o Chrysler. O coldre com o revólver, no assento à direita, tem um cheiro forte de cavalo. O carro funerário dobra à esquerda, violando o gramado no centro da Avenida: o carro militar e o do tenente-coronel seguem-no aos trancos, varam a lona do circo, entram. Natividade e um menino estão sós na arquibancada. A lona azul ondula e entre os mastros as flâmulas. Atravessa o espaço, alto, um turboélice, rumo a aeroportos longínquos. As flâmulas brancas e rubras oscilando. Metódico e sem jamais coincidir, o Ser equilibra-se: por ter os pés entre os dois e nele só existir o lado oposto, há na sua acrobacia qualquer coisa de oculto e incompleto. Arisco, inverte e fica junto, as mãos de fora para dentro, onde. Aplausos, tambores, cornetas e vozes cruzam o oco do circo, desligam-se as chaves dos carros e no silêncio do meio-dia estalam os ossos humilhados da morta, estalam, quebrados por dentes ou instrumentos de ferro. Artistas aparecem, gente de outros países, alguns com sandálias havaianas, por trás dos vestiários bale uma cabra, aproximam-se da morta os pobres domadores e acrobatas estrangeiros, mas os carros dão a volta e partem, acelerando.

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