UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por rotas » O Enterro de Natividade [R21]

Os três carros do enterro percorrem sinuosos as avenidas e ruas cobertas de veículos, algumas decoradas com grandes cubos superpostos, em cores vivas, o velho corpo seguindo ante a pobreza dos filhos e os cartazes de publicidade com as suas imagens de opulência, de juventude, de rapidez, o mormaço estiolando as cinerárias e as rosas, a garganta obstruída, a carne desfazendo-se no centro do rumor - de motores, de freios, de imprecações, de passos apressados, de explosões -, suas cantigas das tardes sossegadas indo e vindo em surdina, fio invisível e melodioso enleando a penúria e a prosperidade (delineiam-se à distância os perfis de potentes instituições financeiras), vai Natividade cada vez mais pesada entre os cimentos e aços de S. Paulo, a cabeça povoada de vozes que se calam e manhãs luminosas que se apagam, rebentam nos jardins e nas ruas as flores pascais das quaresmeiras, distinguem-se nas rendas o fundo e a flor, panos roxos cobrem as imagens na capela do antigo Colégio Arquidiocesano, as detentas do Presídio Feminino erguem-se todas de uma vez à passagem do caixão, ficam de pé junto às grades para que o enterro as atravesse, o enterro atravessa-as, Natividade atravessa-as, atravessa o refeitório, o pátio, as sentinas, as celas, morta e presídio com o mesmo cheiro de ossos no monturo, o Ser, de costas para todos, gane pelo avesso a palinódia, são dez horas no relógio da Estação da Luz, a flor da renda também se chama ornato e se forma pelo cruzamento de fios entre as malhas, os jovens pés da negra vencem rápidos as sendas, percorrem as plantações de café e de algodão, endurecem com os anos e os percursos restringem-se, sempre mais cautelosos e lentos e pesados os pés, como se tendessem para a quietude e agora atravessam na manhã de maio os corpos das mulheres, rasgam-se nos corpos, artelhos e unhas vão sendo extraídos (corpos de arame farpado os das presidiárias?, de cacos de garrafas?, de ganchos de açougueiros?), trespassados pelo corpo de Natividade os corpos parecem engrenagens malígnas, dilaceram o couro crestado dos beiços, furam os olhos cegos, rasgam a casca de rugas e descobrem - mas sem dentes, e também cortam fundo - a cara da menina negra que, iludida, canta no algodoal.

O carro da empresa mortuária, o Chrysler e o transporte militar, deixando para trás as pequenas marmorarias e os efêmeros mercados de fogos de artifício, ladeiam o cemitério: à direita, por trás do extenso muro, figuras aladas, santos, pontudos tetos de pedra, cruzes. A galharia seca das árvores no meio da avenida, desliza contra o céu desbotado; só os velhos troncos, crespos de parasitas, permanecem verdes. A luz do Sol, filtrada através dos plásticos que cobrem a fila de barracas na linha das árvores, projeta no chão úmido, nas caras rubras das vendedoras de flores, nas flores e no Ser - sempre alarmado e de través, contrário, manchas de cor meio encardidas. Os pais do oficial adiantam-se e a mulher permanece junto ao portão de ferro, concentrada e dura, forçando uma espécie de isolamento. Seis soldados, dóceis às ordens do superior, saltam do carro e com esforço carregam o ataúde, peso de três mortos, chumbo, as tábuas cedem um pouco à pressão vinda de dentro. O peso do ferro entregue nas obras pode ser inferior ao constante das notas, ou, para falar claro, pode ser roubado. Alguém, durante o percurso, subtrai ferro dos feixes? O encarregado do depósito frauda na pesagem? O próprio chefe da firma vendedora seria o responsável pelo roubo? Olavo Hayano revesa os seus soldados nas alças do caixão, olhar tenso e espáduas tensas.

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333