UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » O Enterro de Natividade [R16]

Corpos invisíveis, com pálidos vestígios de conversas, de outros sons, metálicos ou vítreos, insinuam-se de leve pelas telhas vãs ou cruzam a porta entreaberta do pavilhão onde jaz o grande corpo de Natividade, maior depois de morta, duas grandes velas ladeando a cabeça e duas ladeando os pés, três das quais apagadas para evitar desperdício, coberta com um lençol barato e os calcanhares ultrapassando o catafalco curto, destinado a velhos, seres que diminuem, ondulam entre as tesouras cheias de teias de aranha, deslizam sobre os dois bancos sem encosto, agitam a única chama e a barra do lençol, esgarçada. São antigos domingos que visitam a negra, cheirando ainda a oliva, a folhas de louro, a cebola, a queijo, a vinho. Na sombra do jardim, avançam três vultos e uma voz impessoal de freira alude às relações entre os velhos e a morte:

- Ficam violentos, quando sabem que um dos internados entregou a alma a Deus. Só depois que escureceu trouxemos o corpo para o velório.

Seu hábito branco e o rosto do homem – ele marcha recuado, de cabeça baixa -, levemente alcançados pela claridade que marca as junturas das janelas, hoje fechadas com precauções excessivas, flutuam entre os girassóis ocultos. Falham, por vezes, ou tornam-se mais leves as passadas da mulher que segue junto à freira, como se ela abrandasse o peso do corpo, atenta ao estalar de juntas, às tosses ao arrastar de urinóis e às frases cortadas que enchem os dormitórios. A freira adiantou-se, abre a porta e o casal aparece à luz da vela: ele corpulento e assustado, ela com o rosto meio oculto entre os cabelos soltos, um leve impermeável castanho sobre os ombros. A irmã, apressadamente e olhando de viés, acende as outras velas - as quatro, agora demarcam um retângulo - e ajoelha -se no chão. O homem contendo as lágrimas, descobre o rosto da negra. A mulher, do outro lado da morta, a fronte estreita inclinada para a frente e toda a face iluminada pelas quatro chamas, fixa o homem através dos olhos meio fechados e de dentro desses olhos dois outros olhos o fixam, negros, sem contemplação, abertos e negros, com estrias de ouro. Ela diz a si mesma:

Abre ainda mais, como se o ar pesasse, a boca sempre cerrada.

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