UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » O Enterro de Natividade [R18]

Abre-se o portão do Asilo e os pneus do carro fúnebre esmagam o saibro do jardim levando o corpo de Natividade; o Chrysler, vagarosamente, segue-o, sob o olhar de alguns velhos sentados nos alpendres; a viatura do Exército, estacionada na rua, dá partida. O cortejo está completo. Duas religiosas, com seus hábitos brancos, persignamse e fecham o portão - há um breve tinido de correntes. O capelão do Asilo, a batina cinzenta desbotada e o guarda-chuva aberto comido de traças, vem no seu andar senil e pára no centro do jardim, ao sol, junto à escultura pintada que também sustenta um guarda-chuva: a ponteira voltada para cima verte um fio dágua. O padre move os lábios, rezando ou chupando as gengivas. Ouve-se, no silêncio apenas alterado pelo rumor distante do tráfego e dos passos das freiras na aléia central, a soturna chuva artificial em torno da escultura.

O Chrysler negro e a viatura do Exército seguem o carro mortuário através dos pequenos quarteirões do Jaçanã, com crianças descendo as ruas ladeirosas sentadas em carrinhos primitivos, a estridência das rodas de metal no asfalto coberto com um lençol fino de areia, outras brincando sobre montes de barro em terrenos baldios, velhas roupas secando ao sol de outubro ou de novembro, muros guarnecidos com arame farpado, pequenas automecânicas graxentas, escuros botequins, o quadro-negro à porta anunciando pratos populares em letras de alvaiade, calhambeques transportando mudanças - trastes desconjuntados, trouxas, eletrodomésticos e gaiolas de pássaros -, centros espíritas, canta um canário no silêncio e certas ruas permitem uma visão fugaz: montanhas longínquas entre tetos baixos e postes de cimento. Seguem os três veículos em direção ao Centro, através das numerosas e bem marcadas cintas que tanto graduam o traçado quanto a vida da cidade, abandonada, pobre e em tudo semelhante, nesta zona - por trás da qual se estende ainda, seu contraste, o anel das favelas e das fábricas, ladeadas por montes de ferro velho e lixo -, a um povoado de fronteira, com burros arrastando carroças sobre elevações argilosas, entre casas rasteiras e desolados jardins onde medram pés de abóboras. Avançam, cinta após cinta, as ruas tornam-se menos tortuosas, escuras portas de suspensão em aço ondulado substituem as portas de madeira dos armarinhos, multiplicam-se - rede emaranhada e negra - os fios da energia elétrica, com raros pássaros assustados e raras armações de papagaios trazidos pelos ventos de agosto, caminhões e ônibus sobem nos passeios meio esburacados, rodam sobre o mosaico tisnado dos quartos e até as xícaras, os retratos nos álbuns e os sonhos, os que ainda subsistem, são impregnados de fuligem. Frontispícios menos fumacentos, açougues mais arejados, alguns cartazes de rua (Boas Festas!), a multiplicação de veículos ligeiros, de sinais de tráfego e certa ostentação nos mostruários das lojas de tecido indicam um novo círculo, mais opulento, dos muitos que gradualmente se sucedem, contíguos a outros círculos e deles separados. Até que as estruturas dos palácios por vezes decaídos e mesmo assim orgulhosos que governam a cidade, entrevistos de certos pontos do percurso entre árvores outonais e sem nenhum esplendor, alteiam-se de súbito, crivadas de janelas, coroadas de antenas e de luminosos desmedidos, com suas caixas-fortes, seus computadores, seus guichês sonoros, seus elevadores lotados e a rede que os laça e une, as vozes incansáveis das telefonistas. A carcaça negra de Natividade, sempre mais pesada, trespassa devagar esse mundo vário e indiferente, alheia ao traçado das ruas e avenidas, seguida pelo Chrysler e pelos poucos soldados distraídos, rumo ao jazigo perpétuo da família junto à qual envelhece servindo, rumor de bilros e de louça, cheiro de mostarda e de amoníaco, seu velho corpo e este anacrônico cruzeiro entre o asilo e o jazigo, enfim morta, enfim aceita, o silêncio, a inércia e a podridão do seu corpo encantando os lugares onde irrompe. Indispensáveis, à mestra rendeira - para que nasçam dos seus dedos, na almofada, as malhas e desenhos rituais das rendas -, espírito inventivo, gosto, conhecimento dos pontos e juízo seguro sobre o valor dos efeitos.

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