UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » O Enterro de Natividade [R20]

O militar, distanciado dos seus homens e do carro funerário, observa, entre as ambiciosas torres habitadas do Banco do Brasil e do Bank of Boston, o Martinelli com suas duas mil janelas e o céu escuro sobre esses edifícios.

A chuva que começa, a chuva, começa a cair, a chuva, intensifica a desordem, a impaciência e o clamor das buzinas a chuva que começa, a desordem, travessas e alamedas, que, a chuva. As mãos até então e os braços entre si, o Ser recua a esmo, raso, abre os dois lados da boca e grita com a voz pela metade, exultante, preso ao seu também e ao seu desconexo. O carro fúnebre invade o subsolo de S. Paulo e sons da superfície chegam até à morta através das galerias negras; tambores e soldados em marcha compassada, correrias, galope de cavalos, o rolar dos veículos e o embate das línguas. As flores dos ipês rebentam, sulfurinas, em jardins particulares e avenidas. As construções jamais devem assentar na superfície do terreno: elimina-se, assim, o perigo de deslocamento lateral. Além disto, os corpos orgânicos, freqüentes nas camadas superiores do solo, não merecem confiança como base. Os bilros, talhados em madeira resistente, apresentam na parte inferior uma cabeça e na superior um cabo que serve de bobina: nele se enrola o fio. Seu peso e dimensões devem estar em relação direta com o fio a empregar e o gênero de renda que se empreende. Natividade corta uma nota alta da cantiga, suspende o manejo dos bilros e decide vencer a solidão, gerar em segredo uma família de sombras, sua. Volta a cantar, já grávida e feliz. Nascem filhos e filhas, morrem dois com alguns dias de nascidos (chora, trancada no seu quarto sem ventilação, lágrimas reais por esses dois mortos imaginários), os outros crescem e pouco a pouco desgarram-se, vão-se, somem no mundo: Natividade inventa-os e desfaz-se do invento, outra vez só e agora gasta, de útero seco. Sua voz ecoa, forte e comovida, sob os alicerces dos prédios, nos obstruídos corredores do subsolo, a voz das horas em que tece na almofada as rendas corrente cheia, flor no quadro, riso de Cecília ou coroa de rainha, seguem, voz e rendeira, subterrâneas, cortadas pelos fios elétricos e pelas vozes dos cabos telefônicos (eis, Natividade, o amor e o rompimento, as transações, os processos, as edificações, as demolições), avançam em curvas, cantora e melodia, mordidas pelos ratos e saúvas do báratro, turvadas pelo lixo da enxurrada, sucessivamente lustradas pelas águas dos condutos e contaminadas pelas podridões e fezes e mênstruos e urinas e escarros e vômitos e fetos abortados que descem pelas bocas dos vasos sanitános.

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