UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Os espoliados
Constatamos, pelos agrupamentos dos fragmentos do enterro de Natividade, que no conjunto eles expressam uma história de exploração, tendo como exploradores uma família de militares e como explorada uma negra que trabalha, como escrava, desde sua juventude até a morte. Há marcas espalhadas pelo todo que indicam essa relação e o olhar crítico de uma personagens narradora é diretamente acusador.

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Você está em Leitura por rotas » O Enterro de Natividade [R22]

Os filhos assistem à passagem do enterro e só o olhar da puta é de ódio. Escavadeiras amarelas trabalham perto do muro, caminhões descarregam madeira e ferro, ouvem-se as vozes e os risos brutos dos homens, o bate-estacas abala o meio-dia e as serras mecânicas zunem. O Ser, esfomeado, morde os dentes com um tinir de esporas e contorce a volta, ido. Natividade ergue as mãos e observa, a voz pastosa, a língua meio presa pela costura da morte: "Já morri e estou cheirando a vivos. Água para todos!" Jamais acreditou, realmente, que chegasse a possuir um pedaço de terra. Ludibriada, não se queixa e acaba por dizer, trancada no seu quarto sem ventilação, que afinal de contas o terreno enxarcado e ladeiroso é seu, não de todo, mas em parte, sim, pagou muito por ele e ainda há justiça neste mundo, alguém há de vir, dar-lhe o que foi comprado, alguns palmos da Terra. Paciência. Alguém.

A mulher do oficial, sempre retraída, sustendo ainda o ramo de malmequeres, a mão crispada e um pouco para trás, como quem traz uma pedra para atirar num cachorro, observa a operação, a ponto de ceder, de aderir à cena (o homem e os velhos choram sem mover-se), mas protestando - os lábios meio abertos - que alguém deve abster-se de chorar pela negra e desvalida, sepultada com honras de parenta no jazigo da família:
"Nunca sentou-se à mesa com eles", sim, alguém deve recusar o jogo magnânimo, circunstancial e vão, ser o corpo de Natividade, assumir a sua raiva ou irar-se no seu lugar, não ver quitação na condescendência, não incorrer no engano de medir um modo de ser pelos momentos em que é interrompido e substituído, como agora, por outro, ritual e passageiro. "A vida é pesada no dia a dia e esta hora não quita coisa alguma. Nada. Nada. Nada."
Um fogo queima os braços de Natividade, queima ombros e peitos e as mãos resistem, soltas, a carne avançando nas unhas. "Vou ser recebida'" Erige-se, perto, um alto andaime cilíndrico.

Reduz-se, pequeno limão seco, o estômago vazio de Natividade. Assim. Fígado e baço desfazem-se em vorazes lagartas negras. O pulmão dilui-se, papel úmido e usado, sujo. Pois. A saber. Uma serpente insinua-se por entre as cinerárias, penetra no caixão e morde - como um cão morde um osso - o coração assustado e poeirento da morta.

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