UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R21]
- Não estou em condições de afirmar - modifica-se constantemente a luta e também os sistemas de defesa que jamais cederei a outros métodos de
ação. Mas sei: serei sempre inferior, como homem e artesão, ao que seria em outras circunstâncias. Tornamo-nos, sob a opressão, piores do que éramos. Na
melhor das hipóteses, somos assassinados ou aprendemos a amar a violência. Apenas, não nos cabe de todo, sob a opressão, o peso dos nossos atos: a
posição do opressor não é sem ônus. Por mais que acuse, e ele necessita de acusar, pois detém o privilégio das sentenças e das execuções, arca - embora se
recuse a isto - com as respostas dos demais. Ele é o culpado, se investe contra mim; se eu próprio me destruo, a culpa é sua; se eu o mato, o culpado ainda é
ele: assassino de si mesmo.
Os três carros do enterro percorrem sinuosos as avenidas e ruas cobertas de veículos, algumas decoradas com grandes cubos superpostos, em cores
vivas, o velho corpo seguindo ante a pobreza dos filhos e os cartazes de publicidade com as suas imagens de opulência, de juventude, de rapidez, o mormaço
estiolando as cinerárias e as rosas, a garganta obstruída, a carne desfazendo-se no centro do rumor - de motores, de freios, de imprecações, de passos
apressados, de explosões -, suas cantigas das tardes sossegadas indo e vindo em surdina, fio invisível e melodioso enleando a penúria e a prosperidade
(delineiam-se à distância os perfis de potentes instituições financeiras), vai Natividade cada vez mais pesada entre os cimentos e aços de S. Paulo, a cabeça
povoada de vozes que se calam e manhãs luminosas que se apagam, rebentam nos jardins e nas ruas as flores pascais das quaresmeiras, distinguem-se nas
rendas o fundo e a flor, panos roxos cobrem as imagens na capela do antigo Colégio Arquidiocesano, as detentas do Presídio Feminino erguem-se todas de uma
vez à passagem do caixão, ficam de pé junto às grades para que o enterro as atravesse, o enterro atravessa-as, Natividade atravessa-as, atravessa o refeitório, o
pátio, as sentinas, as celas, morta e presídio com o mesmo cheiro de ossos no monturo, o Ser, de costas para todos, gane pelo avesso a palinódia, são dez
horas no relógio da Estação da Luz, a flor da renda também se chama ornato e se forma pelo cruzamento de fios entre as malhas, os jovens pés da negra vencem
rápidos as sendas, percorrem as plantações de café e de algodão, endurecem com os anos e os percursos restringem-se, sempre mais cautelosos e lentos e
pesados os pés, como se tendessem para a quietude e agora atravessam na manhã de maio os corpos das mulheres, rasgam-se nos corpos, artelhos e unhas
vão sendo extraídos (corpos de arame farpado os das presidiárias?, de cacos de garrafas?, de ganchos de açougueiros?), trespassados pelo corpo de Natividade
os corpos parecem engrenagens malígnas, dilaceram o couro crestado dos beiços, furam os olhos cegos, rasgam a casca de rugas e descobrem - mas sem
dentes, e também cortam fundo - a cara da menina negra que, iludida, canta no algodoal.
Minha mãe, em longa e desordenada carta, acusa o cartão enviado de Rio Grande e espanta-se do meu telegrama. Que estou fazendo em São Paulo, quando meu
objetivo é tentar a edição, no Rio, do manuscrito incluído na bagagem? Os editores, "esses passadores de seixo", não me receberam como devem? "Abri a tua
gavetinha e vi umas folhas escritas. Me deu uma saudade, Abel, de te ver na mesa escrevendo..." Sem transição, no estilo que invejo, se queixa dos ovários: "Uma
parideira fora de combate como eu e esses troços acham de doer ainda! Mas pensando bem, Abel: não é melhor doer agora, quando já não serve para nada, o que
foi na vida a minha ferramenta?" Espera que eu descreva, quando volte, o grande eclipse. "Aqui, foi parcial, uns 10%. Cara de Calo, seu grande amigo, andava do
alpendre para as salas, a cabeça maior do que o corpo, bebendo água sem sede e falando de legisladores, de ângulos, de aspectos, do poder comatoso de
Netuno, que diabo será isso, de oposições, de luminares reinantes e de outras coisas que nem ele entende. Já vi menos doidos jogando pedra em santos e
comendo hóstia com manteiga. Tenho a impressão de que esse sujeito só tem mesmo o lado que a gente está olhando." Conclui: "Não sirvo para nada, um traste,
mas sou a sua mãe e filho meu, no duro, pra valer, é você e mais ninguém, e se você precisar e quiser vou até o fim do mundo, você conta comigo para o que der
e vier, custe o que custar, dane-se tudo, não sirvo para nada, mas amor não me falta."
Y. T. O que anunciam e de onde vêm essas letras? (Suprem, algumas, com o verdor de folhagens semelhantes a leques, a ausência de árvores e flores na Avenida
São João.) X. Isoladas ou unidas, quase sempre isoladas, florido o V, armação de discos móveis e espelhantes o I, severo e negro o H com mil emblemas
secretos. Vogais, consoantes, o S, o U, algumas com tal força de ornato que me custa ler e outras ilegíveis por surgirem caídas, alteiam-se, essas capitulares
leves, na tarde abafada e de ríspidos ventos passageiros que estouram nos tímpanos como tiros. A cabeça intercalada e duro como isto o queixo, torso sem
pontos fixos, espreita-me o Não-Ser com seus olhos perpétuos. Seguidor ou espia? Apenas me adverte? As iniciais guardam entre si distâncias só concebíveis
numa cidade tão desmesurada e algumas ultrapassam os pára-raios e as antenas das imponentes construções que dominam, com as suas janelas incontáveis, a
paisagem áspera, tumultuosa, pontuada de bocas-de-lobo, de onde sobe e injeta-se no ar saturado de carbono, pó negro e petróleo queimado, a podre respiração
dos esgotos. Parlamentares acatam os atos punitivos de Castelo Branco. Renuncia o Presidente da Câmara.
- O meu modo de ver a opressão exige um comentário. Há o tempo em que aspiramos a ser um aferidor equânime das coisas. Queremos, justos, evitar
os erros da paixão. Desejaríamos, para julgar os fatos, todas as informações. Chega-se a que, com isto? Como não vi mais cedo que realmente eu não era um
juiz? Não quero mais julgar e pouco me importa ter todos os dados na mão. Sou um ninguém, um renegado - e basta. Não compreendo e recuso-me a entender os
que são meus inimigos. Para mim, nunca têm razão: eu não os justifico.
O carro da empresa mortuária, o Chrysler e o transporte militar, deixando para trás as pequenas marmorarias e os efêmeros mercados de fogos de
artifício, ladeiam o cemitério: à direita, por trás do extenso muro, figuras aladas, santos, pontudos tetos de pedra, cruzes. A galharia seca das árvores no meio da
avenida, desliza contra o céu desbotado; só os velhos troncos, crespos de parasitas, permanecem verdes. A luz do Sol, filtrada através dos plásticos que cobrem
a fila de barracas na linha das árvores, projeta no chão úmido, nas caras rubras das vendedoras de flores, nas flores e no Ser - sempre alarmado e de través,
contrário, manchas de cor meio encardidas. Os pais do oficial adiantam-se e a mulher permanece junto ao portão de ferro, concentrada e dura, forçando uma
espécie de isolamento. Seis soldados, dóceis às ordens do superior, saltam do carro e com esforço carregam o ataúde, peso de três mortos, chumbo, as tábuas
cedem um pouco à pressão vinda de dentro. O peso do ferro entregue nas obras pode ser inferior ao constante das notas, ou, para falar claro, pode ser roubado.
Alguém, durante o percurso, subtrai ferro dos feixes? O encarregado do depósito frauda na pesagem? O próprio chefe da firma vendedora seria o responsável pelo
roubo? Olavo Hayano revesa os seus soldados nas alças do caixão, olhar tenso e espáduas tensas.
Mortal, não pertence à morte; histórico, rompe as limitações de uma aparência familiar. Conciliam se, nele, hóspede dos dias e das noites, abrigando no
seu corpo os zumbidos das abelhas imóveis e suspensas, as duas faces do Tempo.
Flui, no primitivo leito de um rio banido do seu curso pelos formadores de São Paulo, o Vale do Anhangabaú. Sobre esse vale asfaltado e inundado pelo tráfego,
vibram, da manhã à noite, percutidos por milhões de pés e abalados pelo curso dos veículos, os grandes viadutos, pontes unindo as margens de torrentes
fantasmas. Eis um W, vegetal e zoológico (gaviões nas escamas das serpentes, bodes nas penas dos gaviões e girassóis nos chifres dos bodes), um W
oscilante, os duplos vértices da base emaranhados entre os ferros do Viaduto Santa Efigênia. Os dois arcos sobre os quais se apoia o viaduto parecem abrir-se
com o peso do arcabouço e dos ônibus lotados. Rasgando-se nos rebites que estouram como botões numa túnica estreita, ergue-se o W, desprende-se e tomba,
estandarte sem mastro, sobre as fuliginosas árvores da praça e nas copas sem viço floresce uma Primavera breve e inesperada. Vejo o Assomo Anônimo por trás
dos reflexos: intraduzido e exceto, de costas para a esquerda, as mãos coincidentes, com o aspecto de quem passa ao largo.
Desaparece a língua de chamas. Voassem as aves cósmicas de Humboldt, ou, aterrados, monstros da alta atmosfera, em bandos e compactos
cerrados, a um só ir, zás, do oval de sombra, levando a sombra nos pêlos e nas penas das caudas, atrás, como o pó e o vento dos galopes? Verga-se, nos seus
pesos e forças, o mecanismo vultoso e delicado do eclipse? Fulge ainda na Lua um espelho mínimo, mas, contrariando previsões e cálculos, o disco negro traga-
o: eis a caligem absoluta. Que nome tem esse grito que estruge de uma vez no acampamento, grosso e animal, lançado até pelos mudos? Clamor dos dentes?
Trovoada negra? O mundo vindo abaixo?
Agitam-se cor de chumbo os perfis das bandeiras, um fulgor acende-as, abre no cenário clareiras e vazios, borrões de betume, parte o quinto foguete da
seqüência de quinze.
Um vento move nas trevas os ramos da árvore na praça, inquietando os pássaros, rítmico. Abano de plumas, rítmico, a cabeleira de pulsa ao sopro
compassado. Ouço um ruído áspero e vindo de grande altura, como se todas as portas da cidade, arrancadas, boiassem no ar e se abrissem de um só golpe,
rhroeirh. A vasta nuvem escura, compacta e adejante só evoca em mim e a idéia de pássaro no momento em que nos sobrevoa com o seu cantar informe. As
asas, tão largas que, abertas, apagam muitas estrelas e a brilhante coroa em torno do disco betuminoso da Lua, tornando ainda mais negra a breve noite
meridiana, sacodem os tetos das casas quando batem, encurvam os galhos da árvore, levantam o pó das pedras e atiram mariposas contra nós, contra o chão,
contra as casas. Curvamo-nos, as mãos à altura dos olhos, fazendo o possível, apesar dos ciscos e das asas nas pestanas, para não perdê-lo de vista (sua
plumagem de ébano) e rimos, sufocados, do seu grasnido lastimável, um aleijão: laringe de chifres e de batinas velhas? Sua passagem é rápida, um vôo reto,
embora dificultoso (as asas, longe de erguê-lo como as dos pássaros diários, arrastam-no, cabeça e asas, vivas, levando um corpo morto, um fardo) na direção
sudeste-noroeste, parecendo evoluir de um lugar ensolarado para o centro da escuridão, cruza os céus, grotesco e estúpido, desaparece. está nos meus
braços, a respiração descompassada, mariposas debatem-se nas pedras e algumas folhas voam ainda. O volume, a vibração, a consistência, o peso, o calor e o
perfume, sob o eclipse, do seu corpo desejável e ainda secreto, Sol e Lua apagados sobre nossas cabeças juntas (a face aveludada e febril), as ocultas estrelas
diurnas reveladas. Sua boca, tépido fruto sugador, sabe nesta escuridão a vinho e a pão fresco.
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