UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R17]

Aproxima-se o termo da viagem, passa o trem por estações suburbanas cujos nomes não leio e onde vultos pervagam nas plataformas úmidas. O panorama tende a ampliar-se no sentido vertical: vejo sob as rodas do vagão ruas tristonhas, tetos enegrecidos, quintais com bananeiras e latadas - e logo viadutos de metal sobrelevam a via férrea atravancados de ônibus, de caminhões e de misturadoras de concreto. Homens e mulheres taciturnos, na manhã enevoada, furam em todos os sentidos a paisagem como que estruturada em andaimes, e, embora veja-os de longe e de passagem, identifico a origem de muitos, Ceará, Bahia, Pernambuco: o Norte. Quantos, dentre esses operários de fábricas ou da construção civil, terão votado ontem, nas eleições para o Legislativo? Muitos com roupas leves e todos de bolsa na mão cruzam apressados as ruas, escalam sendas abertas no matagal hirsuto e retalhado em cercas, sobem ou descem os degraus dos viadutos. Vários, agrupados ante uma cancela baixada, esperam que passe o último carro do trem. Saio da estação e os vejo de perto, amontoados na carroceria de um Scania-Vabis, enquanto me aventuro sem destino na cidade ainda estranha e que cheira a petróleo. Concluída com êxito missão da Gemini 12. A luz dourada do amanhecer alcança os andares superiores dos prédios. Mulheres, com crianças no braço e guarda- chuvas abertos, cortam o tráfego compacto e moroso, em demanda dos postos de saúde. Perto de uma construção baixa e extensa, enfeitada com muitas bandeiras encardidas (Estação Rodoviária?), dois homens entornam no passeio grandes tonéis de lixo. Sodré: surge uma nova democracia. Ônibus chegam e partem fazendo curvas fechadas, carregadores atropelam os passageiros e mendigos enrolados em jornais, os pés casquentos protegidos com restos de sapatos, ressonam junto às paredes. Sem que, com um gesto ou palavras, tente reter-me a seu lado, levanto-me e fico de pé na escuridão do quarto. Sinto um corpo estranho sob a língua, uma agulha de costura. Cuspo-a. Outra na mão fechada. Jogo-a fora. As palavras ou o silêncio da hora e as trevas que me cercam arrancam a minha pele, estou descarnado e vulnerável. - Pode-se supor que um projeto literário pouco comprometido com a superfície do real - e portanto com o tempo histórico -, não contradiz, em princípio, a gramática dos opressores. No nível em que indaga e se organiza, seguiria o seu curso naturalmente e sem dilemas. Os galos, imóveis na madrugada, fixam-me, os bicos apontados para mim. Desejaria apoiar-me em objetos – e se possível em alguma coisa que me pertencesse, um relógio, um porta-chaves, meus sapatos. Tateio as sombras e minhas mãos se afastam, desprendem-se dos braços, os braços do tronco e as pernas se desmembram. A escuridão: um ácido? Lâminas sutis? Espero o que pode vir, o que deve vir, o que tem de vir, o que não pode deixar de vir. Vem? Os dedos soltam-se das mãos. Há um ranger de madeira e de molas de aço, um ar, um ondular de manto, o cheiro de canela dos lençóis (ó tardes de verão, inebriantes, as flores rubras do flamboyant explodindo na janela do quarto e o som do mar - ou a espuma do som? - morrendo nos ladrilhos mornos) e a sua voz, quase ininteligível, zune entre os dentes cerrados, próxima das minhas unhas, das minhas jugulares, do meu baço: - Abel, Abel, eu te amo. Meu nome e a confissão atingem-me. Ficam em mim, voz e palavras, projéteis, cravados: sólidos, cortantes. Facas. Desmembro-me para que isto suceda e agora reúnem-se os pedaços soltos, articulam-se e encerram como em uma armadilha a curta frase atirada na sombra. As flores do quimono, negras, movem-se, ela vem a mim, lenta e segura, como se me visse, vem a mim e abraça-me: os olhos buscam meu rosto. Pode um homem agir como se tudo fosse como antes, quando em seu coração renega a vida estável e já partiu. Eis-me reduzindo as nossas relações a um encontro fortuito, isolado, sem conexões com outras circunstâncias e eventos, eis-me dizendo o que sou ou estou certo de ser, eu, inebriado e ferido, dividido entre um obstinado projeto criador e a cólera ante um mundo armado de garras, nas patas, no rabo, nos olhos, nas línguas (como, em face deste mundo, amar a um ser único?), tenho a força de amar, sim, a força de amar, apenas como as bestas?, não, eu, animal inflamado e visionário, possuo a força de amar, não, porém, a inocência e talvez a surdez que o amor exige (não ouvir o clamor dos massacrados, não ouvir o protesto dos roubados, não ouvir o gemer dos enganados, o ranger de dentes dos mudos, mas eu ouço) , doem-me ainda outras feridas e eu não quero, do amor, as doçuras, os sobressaltos, as perdas. Prende-me o rosto, pressiona-o contra o seu, ardente, e o seu corpo, febril, adere ao meu. O mover dos lábios na pele do meu ombro e o hálito em fogo: - Aqui, Abel, não é um quarto. É um aspecto, veja e saiba, do Lugar e da Hora em que nos encontramos afinal. Pese-me pela minha substância e desespero. Abel! Não me reconhece? Reconheço-a? Fala-me, onde terá lido sobre isto, de instrumento musical familiar aos hebreus, chama-se macul?, sim, macul, do qual se desconhece a forma - era de cordas - e só o nome resta, só o nome. Será o amor, em nosso tempo, um instrumento em vias de desaparecer? Só a palavra amor sobrevive ainda? Seja então restaurado e através de nós, Abel, perdure. O que será de tudo, se também nos arrancam a força de amar? A alegria de amar? A raiva de amar? A cera que me obstrui os ouvidos se dissolve e eu escuto, não as palavras de , não a voz e sim o nexo, o sentido, a lei, a ordem, a coerência, a relação, o conjunto, a simetria, o desígnio, o desenho, a trama. Roos. Cecília. Amo-as? Sim. Amo-as e a extensão do meu amor, em cada caso, exaure-me. Amo-as e sucumbo à gravidade do amor e de tudo o que este amor desperta, subleva, aciona. Mas o amor que conheço em instâncias precisas da vida e que me alça, por dois breves períodos, a um modo febril e mesmo exasperado de viver, tornando candentes - como por uma espécie de atrito - então e sempre uns poucos dias e noites (exaltantes, nessas noites, nesses dias, mesmo o infortúnio, a perplexidade, a solidão), não seria o núcleo do que se anuncia com as suas árvores crescendo no sentido das raízes, seus peixes cantores, seus touros submersos? Roos e tu, Cecília. Eu vos amei e amo e este amor é integral, não mais pobre ou limitado que qualquer outro amor, sim. Vejo, mesmo assim, que vos amo de modo parcial, conquanto absoluto. Pondera e mede, Abel: o que agora começas a aceitar é como se ouvisses, triplicado, em três pontos de um grande pátio em silêncio, a mesma voz pronunciar teu nome. Agora, a ti mesmo te unes, vens e vens, eras três e agora, sendo um, és tríplice - e o mesmo nome, o mesmo, é, de uma vez, ouvido três vezes. A compreensão que arduamente alcanço é ofuscante e nas trevas do quarto nasce outro corpo de trevas. Quero manter-me de pé e meus joelhos dobram-se e tudo na Terra, tudo, parece ao mesmo tempo grande e lastimável. Nu, os joelhos nas tábuas, tenho o rosto sobre o sexo de , cheiro de mar e de capim sob a chuva, canta uma cigarra em algum verão longíquo, vejo o que sou, o que somos, dois entes escondidos, destinados a solver o insolúvel, sós na madrugada e no mundo, extraviados, batidos, habitados por visões, e clamo "O que será de nós?", a voz, abafada, vibra como se eu gritasse, intensa, "O que será de nós?", pois não vejo saída e uma tem de haver, e ela dobra os joelhos e abraça-me com força, e eu clamo outra vez o que será de nós e ela me responde "Morreremos, Abel!", o que significa "Aqui estamos, havemos de morrer mas ainda estamos vivos e afinal a vida, longa ou breve, dura apenas um dia, ninguém vive dois dias, ninguém, importa que haja nesse dia uma hora, um minuto, um instante que ilumine o resto e fure os socavões, os sótãos, eu te amo, com garras e com dentes, ama-me. Vem a penúria? A desolação dos tempos? Vem o apocalipse? As bestas flageladoras? Venham. Estamos enlaçados. Vivos estamos. Amamos. Garras e dentes". Vozes profusas vão e vêm no seu flanco, vozes no seu corpo, não nas paredes ou além das paredes, indo e vindo, distantes, as vozes de um motim. Crava as unhas no meu dorso, passam músicos na praia, abraço-a com força, uma flauta, um violão, um trombone, uma rabeca, os pés descalços dos músicos na areia, nossos corpos oscilando, céu estrelado e grandes aves na praia olham passar os boêmios, ofusca-me nas trevas, fugaz, um arabesco, uma mulher segue à distância os quatro homens e ginga ao som da música (os passos miudinhos e os meneios de cabeça, as mãos levantando a saia), o céu empalidece sobre a linha do mar, duros cílices cortantes laceram-me a língua, o chapéu do rabequista é arrancado pelo vento, ele corre com o arco e a rabeca no ar, os demais intensificam alegremente a música, oscilamos abraçados, rosto contra rosto, as tábuas rangem com o mover dos corpos, tão crispados este abraço que os meus punhos vibram, cada vez nos cingimos com mais veemência, não sabemos como interromper o abraço e decerto iremos agora rebentar em soluços. Fabordão.

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333