UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

A voz de 
A personagem , como uma das alegorias do próprio romance, representa o processo dessa estrutura literária em que cada capítulo é composto por vários fragmentos de subunidades entrelaçados de modo que a opressão, a atuação dos militares, a representação dos oprimidos sem voz e sem vida própria ficam submersas na narrativa maior.

Abel, personagem-escritor, reflete metaliterariamente em pseudo-diálogos com a personagem 

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Você está em Leitura por rotas » Reflexões de Abel ou Ö [R17]

Sem que, com um gesto ou palavras, tente reter-me a seu lado, levanto-me e fico de pé na escuridão do quarto. Sinto um corpo estranho sob a língua, uma agulha de costura. Cuspo-a. Outra na mão fechada. Jogo-a fora. As palavras ou o silêncio da hora e as trevas que me cercam arrancam a minha pele, estou descarnado e vulnerável.

- Pode-se supor que um projeto literário pouco comprometido com a superfície do real - e portanto com o tempo histórico -, não contradiz, em princípio, a gramática dos opressores. No nível em que indaga e se organiza, seguiria o seu curso naturalmente e sem dilemas.

Meu nome e a confissão atingem-me. Ficam em mim, voz e palavras, projéteis, cravados: sólidos, cortantes. Facas. Desmembro-me para que isto suceda e agora reúnem-se os pedaços soltos, articulam-se e encerram como em uma armadilha a curta frase atirada na sombra. As flores do quimono, negras, movem-se, ela vem a mim, lenta e segura, como se me visse, vem a mim e abraça-me: os olhos buscam meu rosto. Pode um homem agir como se tudo fosse como antes, quando em seu coração renega a vida estável e já partiu. Eis-me reduzindo as nossas relações a um encontro fortuito, isolado, sem conexões com outras circunstâncias e eventos, eis-me dizendo o que sou ou estou certo de ser, eu, inebriado e ferido, dividido entre um obstinado projeto criador e a cólera ante um mundo armado de garras, nas patas, no rabo, nos olhos, nas línguas (como, em face deste mundo, amar a um ser único?), tenho a força de amar, sim, a força de amar, apenas como as bestas?, não, eu, animal inflamado e visionário, possuo a força de amar, não, porém, a inocência e talvez a surdez que o amor exige

- Aqui, Abel, não é um quarto. É um aspecto, veja e saiba, do Lugar e da Hora em que nos encontramos afinal. Pese-me pela minha substância e desespero. Abel! Não me reconhece?

A cera que me obstrui os ouvidos se dissolve e eu escuto, não as palavras de , não a voz e sim o nexo, o sentido, a lei, a ordem, a coerência, a relação, o conjunto, a simetria, o desígnio, o desenho, a trama. Roos. Cecília. Amo-as? Sim. Amo-as e a extensão do meu amor, em cada caso, exaure-me. Amo-as e sucumbo à gravidade do amor e de tudo o que este amor desperta, subleva, aciona. Mas o amor que conheço em instâncias precisas da vida e que me alça, por dois breves períodos, a um modo febril e mesmo exasperado de viver, tornando candentes - como por uma espécie de atrito - então e sempre uns poucos dias e noites (exaltantes, nessas noites, nesses dias, mesmo o infortúnio, a perplexidade, a solidão), não seria o núcleo do que se anuncia com as suas árvores crescendo no sentido das raízes, seus peixes cantores, seus touros submersos?

A compreensão que arduamente alcanço é ofuscante e nas trevas do quarto nasce outro corpo de trevas. Quero manter-me de pé e meus joelhos dobram-se e tudo na Terra, tudo, parece ao mesmo tempo grande e lastimável. Nu, os joelhos nas tábuas, tenho o rosto sobre o sexo de , cheiro de mar e de capim sob a chuva, canta uma cigarra em algum verão longíquo, vejo o que sou, o que somos, dois entes escondidos, destinados a solver o insolúvel, sós na madrugada e no mundo, extraviados, batidos, habitados por visões, e clamo "O que será de nós?", a voz, abafada, vibra como se eu gritasse, intensa, "O que será de nós?", pois não vejo saída e uma tem de haver, e ela dobra os joelhos e abraça-me com força, e eu clamo outra vez o que será de nós e ela me responde "Morreremos, Abel!", o que significa "Aqui estamos, havemos de morrer mas ainda estamos vivos e afinal a vida, longa ou breve, dura apenas um dia, ninguém vive dois dias, ninguém, importa que haja nesse dia uma hora, um minuto, um instante que ilumine o resto e fure os socavões, os sótãos, eu te amo, com garras e com dentes, ama-me. Vem a penúria? A desolação dos tempos? Vem o apocalipse? As bestas flageladoras? Venham. Estamos enlaçados. Vivos estamos. Amamos. Garras e dentes".

Vozes profusas vão e vêm no seu flanco, vozes no seu corpo, não nas paredes ou além das paredes, indo e vindo, distantes, as vozes de um motim. Crava as unhas no meu dorso, passam músicos na praia, abraço-a com força, uma flauta, um violão, um trombone, uma rabeca, os pés descalços dos músicos na areia, nossos corpos oscilando, céu estrelado e grandes aves na praia olham passar os boêmios, ofusca-me nas trevas, fugaz, um arabesco, uma mulher segue

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