UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R6]

Ubatuba, nesta quinta-feira de novembro, lembra uma cidade morta ou da qual fugiram os habitantes. O rosto de , de perfil, adquire, à claridade fria da tarde, contra os vidros molhados do carro, uma transparência que o faz intocável e distante. Ergue-se nas mudanças de marcha o vestido: seus joelhos luminosos. Algumas casas antigas e de aparência nobre, também estas mal cuidadas, assinalam um período ascendente e encerrado. Castelo Branco adia sine die a execução de novas cassações de mandatos. Um ciclista, conduzindo varas de pescar, passa sob a chuva fina. -Traí e ofendi. Se você conheceu o desespero, talvez concorde comigo, Abel: o desespero, em suas formas agudas, não é abstrato. A partir de Rio Grande, ao longo de uma reta que, erguendo-se do paralelo 32, entre a Lagoa Mirim e a Lagoa dos Patos, alcança a cidade de Bagé, todos vindos, alguns, de países distantes, aguardamos o eclipse anunciado para esta manhã de novembro, sem nuvens e sem vento. A nossa existência mesma nem sempre é compreensível; isto por não ser, forçosamente, um evento completo. As narrativas simulam a conjunção de fragmentos dispersos e com isto nos rejubilamos. Os eclipses evocam-nas. A negra Natividade, estendida no leito do Asilo, julga ser quase noite, incapaz de ver, através da janela, a luz da tarde e ela própria entre velhos, no jardim, apoiada a um bastão. O carro mortuário, com o seu corpo, cruza as ruas de São Paulo (escavadoras mecânicas, serras, bate-estacas), lento. O quarto cheira a cânfora, a toucinho, a palha de milho, a fogo de lenha, a tábua de lavar, a chão encerado, a água sanitária, a goma, a orégão, a vinagre. Ela aproxima dos olhos as mãos meio entrevadas. - De súbito, a gente sente na carne um corpo estranho e deseja arrancá-lo. Nada abstrato, o desespero. Uma raiz, um seixo aquecido, incrustados num ponto qualquer do tronco. Um gato podre. no centro do tráfego da Rua São Luís, voltada para mim, o vestido e a pele atravessados pelos incontáveis faróis. Hesita? Todas as luzes da noite, globos da iluminação pública, esmalte e cromado dos carros, faíscas brancas arrancadas pelo trolley dos ônibus na rede elétrica, letreiros, sinais de tráfego, mármores polidos e vidraças do Edifício Zarvos, letras efêmeras do jornal luminoso, LE MONDE CONSIDERA EQUÍVOCA VITÓRIA DO GOVERNO NO BRASIL, faroletes rubros e luzes dianteiras dos veículos em marcha, tudo liga-se e explode, fogos de artifício, círculo girando e ela o centro do círculo, do fogo. -Traí e ofendi. (Estas palavras, na sua voz temperada como um instrumento ao mesmo tempo arcaico e sutil, rico em variações e às vezes rompendo em ruídos rascantes, cada sílaba, irisada, o dorso de um escaravelho, soam desfiguradas. Lâminas cortantes, de aço? Não, o molde das lâminas.) Ressoa o mar nos vãos silenciosos da noite. Ela e eu, nus, de mãos dadas, no leito. Rangem a cama e as tábuas do quarto com o pulsar violento do meu sangue e do seu. Fere-me a língua uma agulha, fina. Cuspo a agulha no chão. - Não há saída, Abel? Nenhuma? - Para dizer a verdade, não vejo qual. Uma saída? A opressão infiltra-se nos ossos e invade tudo.

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