UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
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Você está em Leitura por temas » Tema R - Ö e Abel: encontros, percursos, revelações [R14]
Os olhos crepitantes de e o couro tauxiado das arcas estremecem com o vôo rumoroso dos pássaros
noturnos, de mãos dadas corremos, sem peso e lentos, no mar, rangem as tábuas de carvalho sob meus joelhos,
inclino-me e abraço-a, suas mãos nos meus cabelos, estalam caibros e telhas, penetra-me, lancinante e
mesclado a odores marítimos, o seu perfume, alterna-se a música do parque, fragmentada e móvel como as
luzes, com o surdo rumor do mar nas pedras,
descanso o rosto nos seus peitos e não sei se os
aqueço, se são eles que me queimam, não sei — ela começa a falar-me. Fala-me? Isto é falar? Ouço claramente cada sílaba e quase poderia indicar, sem erro, os intervalos entre uma palavra e outra, mesmo sendo língua nova, sem curso e arbitrária. Vai no quarto rangendo esse discurso fechado em si mesmo, lançado entretanto com violência e verdade, esfera impenetrável que contemplo, turbado e a um passo de saber. Saber? O quê?
- A opressão, se instaurada como norma e ainda mais quando se manifesta corn instrumentos precisos -
quase sempre revestidos de uma aura sacral -, apossa-se de um modo absoluto do mundo moral:
uma réplica da gravidade no mundo físico. Infiltra-se nos ossos e invade tudo. Infecciona
o mundo. Infecciona o mundo, eu disse? Sim, isto. Uma doença.
Encho a boca com o bico do seu peito e sugo-o, sendo como se bebesse a vida de
suas paixões e acidentes. Surgem, intercaladas no seu discurso, palavras que conheço
e apraz-me supor que pertencem à mesma frase, desarticulada, enlaçada com outras, numerosas: um corpo desmembrado. Pouco a pouco, o idioma em que me fala e com o qual, talvez, caçando o não caçável, amplie e encante o mundo, retorna ao limbo onde é fabricado. Inversamente, as palavras de uso claro vão ocupando o campo do discurso, desfaz-se a possessão ou demônio verbal e revela-me, não com minúcias e clareza, mas de um modo críptico e simbólico,
como se lesse, ubíqua, nas mãos que visse entre as suas, o próprio destino, revela-me o que da sua vida acredita saber e o que sabe.
Ama-se o que em quem se ama? 0 que, em quem amamos, faz com que o amor se manifeste? O ser (visível) ou sua história, que ouvimos?
e eu ante o eclipse:
leio no mundo e sou instruído, sem palavras, sobre os olhos que me espreitam de dentro dos seus olhos.
— O pior de tudo, Abel, é quando a gente aceita a carcaça podre e decide viver com ela na carne.
Ante o cais, em Ubatuba: eu e ela em silêncio.
Aqui, apagada a lâmpada do quarto e às vezes — eu, ela — fixando o piso ou as paredes apenas visíveis, no curso desta noite irreal e que
a curta noite diurna do eclipse prefigura,
calam-se ou tornam-se ininteligíveis as vozes dos eventos e das coisas — e sua língua move-se convulsa entre os dentes. “Traí e ofendi.” Pretende o que, falando-me?
Presidente da República baixa mais dezenove decretos-lei.
Embora a formação do Iólipo seja pouco explicada, os pais sempre acham que o responsável é o outro, ainda que jamais externem esta convicção. Os olhares afáveis trocados entre marido e mulher fazem supor que cada um procura consolar o outro do infortúnio. Mas o que existe mesmo no fundo desse olhar é ódio, um ódio não expresso e que assume aspectos inocentes: decifrar palavras cruzadas, negligenciar a própria higiene ou mesmo vencer a todo custo na vida.
— Empenho-me na conquista de uma afinação poética e legível entre a expressão e faces do real que permanecem como que selvagens, abrigadas — pela sua índole secreta da linguagem e assim do conhecimento. Existem, mas veladas, à espera da nomeação, este segundo nascimento, revelador e definitivo.
Consigo, por vezes, rápidas passagens —, alcançar o cerne do sensível. O combate quase corporal que sustento corn a palavra liga-se a essas perfurações. Um esforço no qual venho amestrando aptidões mais ou menos embotadas; e para o qual, inclusive, convergem as pausas de sombra, os intervalos em que — sem realmente ver e sim apenas revendo — caço o oculto. O claro e evidente deixa-me frio.
O parque em silêncio, sobe e declina o crescente, altera-se a força das ondas e o vento muda de rumo. As gargantas dos galos.
O que em me exalta é o que vejo? Isto é o que pressinto, sem nome. Seu longo e atribulado discurso multiplica-a e povoa, com múltiplas imagens suas, espaços antes
desérticos. “Nunca falei assim, quero que saiba. A ninguém.” Conheceis uma mulher e ela vos favorece com breves excursões litorâneas. Estende-vos, quando menos esperáveis, um álbum de fotografias. Ei-la, então, em várias idades, debruçada em janelas desaparecidas, sentada em cadeiras hoje atiradas em sótãos, vestindo rendas comidas pelas traças, sob árvores eternas e que continuam a dar os mesmos frutos, eis a galeria de parentes e suas máscaras de mortos se morreram, a Noiva e o Noivo, pessoas, lugares, objetos dispersos e vozes borradas. Essa existência, antes imediata e plana, projeta-se agora sobre um mundo em relevo, que a amplia. No espaço da noite, não sei se rápida ou extensa a noite, surgem e sucedem-se, entre a cômoda, as arcas e as paredes escuras, pela voz de imagens suas ou das quais é o centro.
Seletivos e lisonjeiros, conquanto nostálgicos, os velhos álbuns familiares. o quimono entreaberto e as largas mangas ondulando com os movimentos vivazes
dos seus braços, os crisântemos vagas flores pardacentas, cintilações veladas das pupilas e das gemas nos anéis, a respiração de fogo, sem ritmo e cheirando a
noz-moscada, a resina, a pinho seco, quantos passos e abraços exaltados?, o ranger das tábuas e da cama, o tênue e efêmero lampejo dos cabelos na
obscuridade, uma força intensa e como que tangível, ímã, fluindo dos seus corpos, a voz melodiosa e convulsa (na sua boca: seixos), recusa a polidez dos álbuns
e não sabe o que seja nostalgia, mesmo quando perpassa, evocado, o jovem morto a quem ama.
- A raça dos iólipos, além de pouco difundida, é estéril. Significam, com isso, uma espécie de ponto terminal da raça ou um anúncio do fim? Quem sabe?
A esterilidade, claro, só irá revelar-se no Iólipo adulto. Além da placenta espinhosa, quase nenhurn sinal exterior o distingue dos outros rneninos. Passada a
lembrança do parto, os pais acabam afeiçoando-se a ele e não temem pela sua sorte. Por que iriam temer?
A verdade tem sempre um fundo falso onde se esconde uma palavra ou evento essencial. Aí reside a nossa integridade, o nó dos laços, o encontro das forças, o centro do secreto, o verdadeiro Nome nosso. Aí não chegarei e nem ela admite. Repete-se e povoa-se, abre, até onde pode e suporta, o seu arcano, leva-me, vai, introduz-me, sem ostentação e sem pudor, num mundo jubiloso, convulsionado, fragmentário, duro, sujeito à decifração e não esconde os seus lixos. Por que o faz? Ama com tanto fervor a verdade? Recusa-se a ceder-me um corpo sem história — o que seria ceder um objeto sem ilações e neutro? Crê nos exorcismos a ponto de supor que os incidentes lastimáveis nos quais se lança por decisão e cálculo deixam de existir a medida que os esconde? Os fios, enlaçando-se, formam a renda. Emaranhados, nada expressam e tendem a partir-se.
Falando, admite-me a sua intimidade, antecipando a entrega na carne e que, ampliada por esta admissão de agora, não rogada, não prevista e decerto mais difícil, assume um peso de confirmação.
- A gestação do Iólipo é exatamente igual a das outras crianças. Os mesmos sinais e o mesmo tempo. Os pais aguardam-no sem susto. Inocente e sorrateiro, o monstro.
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