UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » O Corpo de Ö [R14]

descanso o rosto nos seus peitos e não sei se os aqueço, se são eles que me queimam, não sei — ela começa a falar-me. Fala-me? Isto é falar? Ouço claramente cada sílaba e quase poderia indicar, sem erro, os intervalos entre uma palavra e outra, mesmo sendo língua nova, sem curso e arbitrária. Vai no quarto rangendo esse discurso fechado em si mesmo, lançado entretanto com violência e verdade, esfera impenetrável que contemplo, turbado e a um passo de saber. Saber? O quê?

Encho a boca com o bico do seu peito e sugo-o, sendo como se bebesse a vida de suas paixões e acidentes. Surgem, intercaladas no seu discurso, palavras que conheço e apraz-me supor que pertencem à mesma frase, desarticulada, enlaçada com outras, numerosas: um corpo desmembrado. Pouco a pouco, o idioma em que me fala e com o qual, talvez, caçando o não caçável, amplie e encante o mundo, retorna ao limbo onde é fabricado. Inversamente, as palavras de uso claro vão ocupando o campo do discurso, desfaz-se a possessão ou demônio verbal e revela-me, não com minúcias e clareza, mas de um modo críptico e simbólico, como se lesse, ubíqua, nas mãos que visse entre as suas, o próprio destino, revela-me o que da sua vida acredita saber e o que sabe.

Ama-se o que em quem se ama? 0 que, em quem amamos, faz com que o amor se manifeste? O ser (visível) ou sua história, que ouvimos?

leio no mundo e sou instruído, sem palavras, sobre os olhos que me espreitam de dentro dos seus olhos.

O que em me exalta é o que vejo? Isto é o que pressinto, sem nome. Seu longo e atribulado discurso multiplica-a e povoa, com múltiplas imagens suas, espaços antes desérticos. “Nunca falei assim, quero que saiba. A ninguém.” Conheceis uma mulher e ela vos favorece com breves excursões litorâneas. Estende-vos, quando menos esperáveis, um álbum de fotografias. Ei-la, então, em várias idades, debruçada em janelas desaparecidas, sentada em cadeiras hoje atiradas em sótãos, vestindo rendas comidas pelas traças, sob árvores eternas e que continuam a dar os mesmos frutos, eis a galeria de parentes e suas máscaras de mortos se morreram, a Noiva e o Noivo, pessoas, lugares, objetos dispersos e vozes borradas. Essa existência, antes imediata e plana, projeta-se agora sobre um mundo em relevo, que a amplia. No espaço da noite, não sei se rápida ou extensa a noite, surgem e sucedem-se, entre a cômoda, as arcas e as paredes escuras, pela voz de imagens suas ou das quais é o centro.

A verdade tem sempre um fundo falso onde se esconde uma palavra ou evento essencial. Aí reside a nossa integridade, o nó dos laços, o encontro das forças, o centro do secreto, o verdadeiro Nome nosso. Aí não chegarei e nem ela admite. Repete-se e povoa-se, abre, até onde pode e suporta, o seu arcano, leva-me, vai, introduz-me, sem ostentação e sem pudor, num mundo jubiloso, convulsionado, fragmentário, duro, sujeito à decifração e não esconde os seus lixos. Por que o faz? Ama com tanto fervor a verdade? Recusa-se a ceder-me um corpo sem história — o que seria ceder um objeto sem ilações e neutro? Crê nos exorcismos a ponto de supor que os incidentes lastimáveis nos quais se lança por decisão e cálculo deixam de existir a medida que os esconde? Os fios, enlaçando-se, formam a renda. Emaranhados, nada expressam e tendem a partir-se.

Falando, admite-me a sua intimidade, antecipando a entrega na carne e que, ampliada por esta admissão de agora, não rogada, não prevista e decerto mais difícil, assume um peso de confirmação.

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