UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » O Corpo de Ö [R15]

Fechada a janela e acesa sobre a cômoda uma vela, evolui o relato de , mutilado e nem sempre compreensível, dentro da madrugada, misturado com o som das ondas, o cantar esparso dos galos, o vôo interminável dos pássaros noturnos e o cheiro dos lençóis, que recendem a folhas de canela. Move-se a chama aos movimentos mais vivos de e a sombra do seu corpo, agitada, faz rangerem as tábuas. As flores do quimono sempre aberto recuperam o viço e entre a pele de e o espaço que a envolve é como se houvesse um leve pêlo intocável e transparente, matéria sem nome, luz e carne, uma gradação misteriosa.

sentada na cama e eu meio estendido, apoiado sobre os travesseiros: o seu perfil recortado contra a chama, os lábios meios abertos e silentes. A cor e o brilho vívido do castiçal, atenuados, ressoam nos cabelos desfeitos. A princípio, suponho que a lividez do rosto anuncia alguma confissão mais aviltante. Mas o que se esbate nesse perfil meio inclinado é a opacidade (contra a luz, não poderia ver se empalidece), perpassa na sua carne e ossos, fugitiva, uma transparência idêntica a das uvas claras, no âmago das quais entrevemos a sombra das sementes, outro rosto, gêmeo, olha-me através das suas têmporas e não me fala, todos estamos em silêncio, mas do silêncio em que está encerrado é como se dissesse: ouve-me. Apaga-se a visão no instante preciso em que também o rosto não oculto se volta para mim e ágeis sinais - claros sinais e sombrios sinais - surgem a altura do colo, sinuosos e velozes, somem na fronte ou entre os seios, enxame exasperado de insetos, negros e brancos, miúdos. Prende-me o pulso (a temperatura dos anéis) e com a mão direita afaga-me o rosto. Curva-se, pousa a testa sobre a minha e um peito, insinuando-se entre as flores do quimono, esmaga-se, peso tépido e fragrante, contra a minha pele, tornada sensível como se eu fosse de línguas.

Sua testa sobre a minha, ela no centro do quarto e a sombra na parede, a boca entreaberta sobre a minha boca, o seu perfil contra a chama e os olhos secretos fitando-me da têmpora.

Aos poucos, eis que ressurgem da ausência, uma e outra, ambas tensas de drásticos contrastes nem sempre discerníveis, ambas dúplices, e, mais do que dúplices, acima de medidas e limites, ressurgem as duas mulheres a quem amo em pontos afastados dos anos e do mundo, que me atravessam, as quais me confio, que em dado momento concentram e assumem minhas obsessões, trituro entre os molares os seus nomes e os dois nomes como que se fundern, o primeiro nome: claridade constante, maré resplendente, Roos, cardume de fogos, o segundo: Cecília, guarnecida de virilidade, essas a quem amo e ante as quais, humilde e assombrado, subvejo a face - cheia de vozes e signos — do mundo, eis que ressurgem. Introduzo as primeiras alusões, difíceis e abafadas, entre as pausas de e a língua se contorce quando falo. Ouve -me? As luzes apagadas no carrossel imóvel e nas barracas, as ondas se desfazem e as nossas vozes confundem-se, solenes e inflamadas, boca contra boca, a verdade rangendo em nossos dentes, sem artifícios e também sem capciosa ênfase.

Surge no teto uma grande mariposa de asas negras, outras duas na porta. A vela se extingue. Não me movo e continuo despido, embora esfriasse com a madrugada e rápidos golpes de vento façam gemer a aldrava da janela. Falarei em vão? Ambas, Roos e Cecilia, não me ouvem em , foz e confluência?

A estrangeira, oscilante entre as fronteiras do ir e do vir, surpreendente nas edificações de seus espaços tangíveis e fantásticos, cheios de torres, de pássaros, de peixes, de animais rasteiros e bandeiras hasteadas, a estrangeira, esquiva e luminosa (voltam-se as plantas na direção do seu rosto), a frágil e povoada andrógina a quem amo, que se desnuda, múltipla, ante a janela aberta para as vertiginosas tardes nordestinas de estio, pesadas de perfumes, de azul e do zumbir das moscas, essas mulheres tão fundamente amadas que se incorporam para sempre ao mundo, são no mundo uma poeira e um som, eis que as vejo sob uma perspectiva inesperada e que nem assim me espanta. Serias, Roos, em tua flutuação entre o ir e o vir, uma versão mais sutil e antecipadora das oposições de Cecília? Não corresponde à claridade que é um dos teus dons — como a noite corresponde ao dia e a morte ao nascimento — certa constante de negror, associada, desde o eclipse, a presença de ? Além do mais, ignoro como e até que ponto, repercutes, recôndita, não sei até que ponto, nas simetrias, nos ritmos. Tendo a crer, Cecília, que a duplicidade do teu ser coberto de cifras ressurge em , neste caso um ser tríplice, dual e uno, e também pergunto agora se não ouço, por vezes, tua voz na sua boca. Jamais diria, entretanto, serdes fragmentos ou simples tentativas inconclusas desta que, ainda não sei como, vos revive. Sendo, cada uma, absoluta e por assim dizer ilimitada, nenhuma é tudo. Íntegras, não constituem, apesar disto, realidades solitárias: na sua integridade, unem-se em um todo — soma e súmula de totalidades — não superior ou mais perfeito do que as unidades abrangidas.

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