UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » O Corpo de Ö [O9]

Tomam-se providências: eu devo ser protegida. Nada sei e por isto devem resguardar-me, resguardar minha vida. No entanto, fora, a poucos passos da porta sempre fechada, a poucos passos das salas e dos quartos onde, manhãs e tardes, rondando como um cão trespassado de cólicas as janelas guarnecidas com redes finas de aço, giro e giro no meu velocípede, abre-se inúmeras vezes por dia a porta gradeada do ascensor. Este é o lugar da queda. Aí devo precipitar-me, e não - como estão certos - para morrer, antes para nascer. Gero-me para a queda, para isto cresço, para esse lance amadureço enquanto os dias surgem, passam, surgem e passam, os dias. Quem me pare outra vez? De quem sou filha, tu, na segunda vez em que nasço? De uma palavra? Ordena alguém: "Nasce!", e então obedeço, sou nada? Serei, em meu segundo nascimento, um ser como os outros nascido de mulher? Nado de si mesmo? Nado no ar, do ar? O cão com barbatanas e de mãos arredondadas está em mim, sim, está em mim, contudo é um estranho. A luz inunda os olhos, na luz eles se banham, mas ante um clarão muito forte se retraem, fere-os uma chama intensa e próxima. Esse corpo no meu é intolerável, luz demais para mim, fulgor intolerável no meu corpo, no olho do meu corpo. Invadido por ele o meu corpo se fecha, fecha-se mas dentro de si prende a centelha, a chama, e anseia pela solidão, essa treva em que novamente encontrará a paz. Anseio inútil. O esplendor incessante, doloroso e cada vez mais claro, só o esqueço no sono.

Estou no quarto do meu pai, quando o leque se abre dentro de mim. Não se abre aos poucos, com a lentidão própria do mundo vegetal. Abre-se de um golpe, são asas, os braços da criatura-em-mim abertos continuam, as mãos quase tocando meus ombros, mas agora a revestem duas asas, estas asas revestem-na, cobrem a sua nudez, uma espécie de manto, umerais, tectrizes e álulas são de um roxo brilhante, as rêmiges douradas, principalmente nas extremidades, enquanto as penas entre as zonas dourada e roxa li se alternam, umas cor de sangue, outras azuis. lndistintamente, tanto sobre as penas miúdas como nos remígios, cem manchas semelhantes a olhos (ou serão olhos?) contemplam-se a si mesmas. Nada mais vejo, nada mais percebo, senão as asas que escondo. Duram apenas segundos essas asas ornamentais e que nunca voarão. Duram apenas segundos, ou, se maior é a sua duração, com tanta força me atraem que os dias passam ao largo. Cerram-se os cem olhos das asas, elas se desprendem, desfazem-se como se fossem de pó e um vento as levasse, desfazem-se e o ser que antes circundam surge nu, corro à janela e esmurro a tela de aço, o céu está escuro e os edifícios emitem uma fosforescência surda, fulge um raio, o estrondo e o brilho me derrubam. Então, desaba o temporal. O Sol, envolto em nuvens, abre a porta de Câncer.

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