UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O9]

Transmudado o cão com barbatanas, o cão vestido de plumas. Tem orelhas humanas, dissolve-se o focinho e revela-se um rosto de criança, porém de olhos fechados. As barbatanas recolhidas ao seu corpo como se fossem costelas adejantes, como se fossem línguas das costelas. Arredondam-se as patas dianteiras, estendem-se as unhas, em garras, em dedos, erguem-se em direção aos ombros, sua postura assemelha-se à de um crucificado. Vou pedalando às vezes no meu velocípede e um súbito receio me detém. Timidamente, aciono os pedais em sentido contrário, recuo. Pra mim, verticais e horizontais confundem-se, a altura não existe, inclina-se o que era o piso de uma sala, verga-se, enruga-se, a distância entre as janelas e a rua parece transitável. Empreenderia esse trajeto, a pé ou no meu velocípede, se todas as janelas do nosso apartamento não fossem resguardadas, telas de aço que aos poucos enferrujam. Mas não chegou a hora em que me precipito. A queda se prepara, espera-me, de nada servem as telas cada vez mais erodidas pelas chuvas de dezembro e de janeiro, pelo ar sempre úmido, pelo envelhecimento, talvez pelos gritos, pelos ruídos constantes que vêm dos arredores, pela trepidação da cidade. Não faltam, em toda parte, abismos, fossos, não faltam, e quando faltam, se faltam, achamos dentro de nós um vão onde cairmos. Para a nossa perdição? Tomam-se providências: eu devo ser protegida. Nada sei e por isto devem resguardar-me, resguardar minha vida. No entanto, fora, a poucos passos da porta sempre fechada, a poucos passos das salas e dos quartos onde, manhãs e tardes, rondando como um cão trespassado de cólicas as janelas guarnecidas com redes finas de aço, giro e giro no meu velocípede, abre-se inúmeras vezes por dia a porta gradeada do ascensor. Este é o lugar da queda. Aí devo precipitar-me, e não - como estão certos - para morrer, antes para nascer. Gero-me para a queda, para isto cresço, para esse lance amadureço enquanto os dias surgem, passam, surgem e passam, os dias. Quem me pare outra vez? De quem sou filha, tu, na segunda vez em que nasço? De uma palavra? Ordena alguém: "Nasce!", e então obedeço, sou nada? Serei, em meu segundo nascimento, um ser como os outros nascido de mulher? Nado de si mesmo? Nado no ar, do ar? O cão com barbatanas e de mãos arredondadas está em mim, sim, está em mim, contudo é um estranho. A luz inunda os olhos, na luz eles se banham, mas ante um clarão muito forte se retraem, fere-os uma chama intensa e próxima. Esse corpo no meu é intolerável, luz demais para mim, fulgor intolerável no meu corpo, no olho do meu corpo. Invadido por ele o meu corpo se fecha, fecha-se mas dentro de si prende a centelha, a chama, e anseia pela solidão, essa treva em que novamente encontrará a paz. Anseio inútil. O esplendor incessante, doloroso e cada vez mais claro, só o esqueço no sono. Súbito, de algum ponto, voz subterrânea, a queda começa a atuar sobre mim. Exerce sobre o meu ser sua atração, chama-me como o mundo exterior chama o nascituro e eu não sou alheia a essa invocação. Minha inquietude agrava-se; deixo-me cair vinte vezes por dia, do velocípede, da minha cama, da velha e rangedora cama dos meus pais, da grande mesa redonda, subo nas cadeiras (têm o espaldar guarnecido com um pequeno medalhão almofadado, de damasco azul-claro), faço-as oscilar, elas tombam comigo, rastejo pelo chão, percorro as janelas e golpeio com os punhos, com a testa, as telas de aço, olhando para baixo. Do corpo no meu corpo vem um cheiro de laranjas maduras, mesclado com alfazema queimada e flor-de-enxofre. Apenas este odor, sim, só ele me proteje, parece resguardar-me de tudo, sinto-o tecer-se e espessar-se em redor de mim hora após hora, um casulo que eu mesma segregasse. Um casulo. Estou no quarto do meu pai, quando o leque se abre dentro de mim. Não se abre aos poucos, com a lentidão própria do mundo vegetal. Abre-se de um golpe, são asas, os braços da criatura-em-mim abertos continuam, as mãos quase tocando meus ombros, mas agora a revestem duas asas, estas asas revestem-na, cobrem a sua nudez, uma espécie de manto, umerais, tectrizes e álulas são de um roxo brilhante, as rêmiges douradas, principalmente nas extremidades, enquanto as penas entre as zonas dourada e roxa li se alternam, umas cor de sangue, outras azuis. lndistintamente, tanto sobre as penas miúdas como nos remígios, cem manchas semelhantes a olhos (ou serão olhos?) contemplam-se a si mesmas. Nada mais vejo, nada mais percebo, senão as asas que escondo. Duram apenas segundos essas asas ornamentais e que nunca voarão. Duram apenas segundos, ou, se maior é a sua duração, com tanta força me atraem que os dias passam ao largo. Cerram-se os cem olhos das asas, elas se desprendem, desfazem-se como se fossem de pó e um vento as levasse, desfazem-se e o ser que antes circundam surge nu, corro à janela e esmurro a tela de aço, o céu está escuro e os edifícios emitem uma fosforescência surda, fulge um raio, o estrondo e o brilho me derrubam. Então, desaba o temporal. O Sol, envolto em nuvens, abre a porta de Câncer.

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