UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O8]

Salta o peixe das vastidões do mar, salta o peixe e este salto nem sempre ocorre no momento propício, nem sempre advém próximo à terra, às ilhas, aos arrecifes, nem sempre há luz nessa hora, pode o peixe encontrar um céu negro e sem ventos, ou uma tempestade noturna sem relâmpagos, ou uma tempestade de raios e relâmpagos, assim o salto, o instante do salto, esse rápido instante pode coincidir com a treva e o silêncio, pode coincidir com o mundo ensolarado, enluarado, o peixe no seu salto pode nada ver, pode ver muito, pode ser visto no seu brilho de escamas e de barbatanas, pode não ser visto, pode ser cego e também pode no salto, no salto, no salto, encontrar no salto, exatamente no salto, uma nuvem de pássaros vorazes, ter os olhos vazados no momento de ver, ser estraçalhado, convertido em nada, devorado, e o espantoso é que esses pássaros famintos representam a única e remota possibilidade, a única, concedida ao peixe, de prolongar o salto, de não voltar às guelras negras do mar. Mas não serão essas aves, seus bicos de espada, uma outra espécie de mar, sem nome de mar? A música de Orff continua: coro dos jovens, das jovens, coro dos anciãos. Proclamam os velhos a transitoriedade das paixões, immensa stultitia mas os jovens contestam ferventes de esperança. Sem pressa, Abel me sujeita, morde meus seios nus, toma-os entre as mãos, neles descansa o rosto, o paletó azul-marinho jogado sobre uma poltrona, a mão esquerda (asa?) desce pelo meu flanco, um dos sapatos de borco junto à cristaleira, sua mão alcança-me o joelho, outro sapato com o bico no rodapé cinzento (parece um cágado que explorasse a parede), a mão domina uma espécie de tremor, sobe entre as coxas, morna e cautelosa palma, cautelosa. "Estou ouvindo seu coração bater. Bate como se eu ouvisse ao mesmo tempo a pancada e o eco da pancada. Conheci dois pássaros assim. Dois canários. Um repetia o canto do outro." Volta-se para mim, apoiado num braço, a outra mão afagando-me a axila, volta-se, quem sabe escutarei dentro em breve no meu corpo as vozes que só ouço pela madrugada e que desde lnácio Gabriel têm sido neste mundo a minha companhia, a única, tiro a sua gravata, lanço-a para um lado, começo a desabotoar sua camisa, carros desfilam na avenida, lentos. Ouvirei aquelas vozes, o enxame de palavras que jamais distingo e ainda assim me conforta? Faz calor nessas tardes de novembro. Meu corpete negro, atirado longe por ele, pende de um bule de prata não polido, uma das meias atravessada sobre os meus sapatos, não sei onde foi ter a outra, introduzo a mão na abertura da camisa branca, sinto a sua pele, não, não a pele, antes uma força existente sob a pele, um ímã, minhas mãos deslizam sobre o ímã e não podem desprender-se, o coelho e o crocodilo saem lentamente do meu corpo, instalam-se no seu, ele recomeça a falar e a sua voz vem através das lianas, das flores e animais em que estamos ambos enredados: "Posso graduar as suas pulsações. Afasto-me de você; elas se espaçam. Ponho as mãos na sua pele; as batidas tornam-se mais rápidas e você respira mais depressa." Enquanto o ouço, enquanto a sua voz me envolve, enquanto, soergo-me, desato meus cabelos, movo a cabeça, movo-a, meus cabelos desenrolam-se, frouxos, cobrem minha espádua. - Lindas, essas cores. Mel e aço? Toma entre as mãos as madeixas desdobradas, afaga-as delicadamente e não vê que duas cabeleiras se mesclam no meu crânio, duas. "Prata e mel." Onde, no seu rosto, os ganchos da virilidade? Na testa ampla, nos olhos claros, nos molares um pouco salientes? O rosto vagamente mongol e o tom de âmbar descorado da pele. "Que lindos, nesse instante, seus seios. Sabe o que eu vejo neles? Um mapa marítimo. Um arquipélago de nomes." "Nomes de ilhas?" Não responde: fica sério, de um modo que me assusta. E toca-me no peito, na cicatriz: - O que é isto? -Um furo de bala. - Que tempo faz? -Quase dez anos. -Quem disparou? -Eu mesma. Emudecemos e os dois ficamos estendidos, lado a lado, presos pelas mãos, olhando o lustre, nascem-me flores na língua, flores de caule espinhoso e em minha garganta há um rebanho de ovelhas tosquiadas.

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