UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O10]

- Eu mesma disparei. Não quero que me despreze por isso. Abel, sem responder, sem voltar-se para mim, cinge mais forte - e não sem brandura - os meus dedos. Qual a idade da mão que dispara? Vinte e três anos? Quatorze? No sofá, convalescente, eu reclinada; toco a cicatriz, a pele tenra e ainda sensível, acaricio-a. Reluto em levantar-me. Se o faço, estendo-me em seguida na cama ou passo horas sem fim ante o espelho, penteando os cabelos, penteando-os. Que mão empunha a arma? Poderia uma impedir que a outra concluísse o gesto, a pressão - tão leve - no gatilho? Questões inúteis. Beijo de manso seus ombros, debruçada sobre ele, de modo que meus peitos e cabelos o afaguem, cubram-no. Sua pele rescende a silêncios e manhãs. Mais frágil, o torso, do que faz prever sua cabeça; frágil, pobre de músculos, um torso de alguém pouco afeito a exercícios e sombreado de pêlos cor de cobre. Não fossem os pêlos, seria o tronco de um adolescente. Beijo os bicos escuros, ele se volta aos poucos, beijo-lhe as costelas, fica de borco e eu beijo-lhe a cintura, as vértebras, as omoplatas, a nuca. "Em ti, em ti, em ti - protesta o coro dos jovens - residem toda a alegria, todas as doçuras, todas as volúpias." Beijo-lhe o ouvido e trinco a pele do seu ombro (em ti), vou cerrando os dentes como quem aperta um parafuso, aos poucos (Basta me!) ele fica tenso, mordo com mais força, os animais do tapete correm alvoroçados entre os nossos corpos (Morde me!) eu deixo de morder, passo a língua sobre a marca vermelha dos meus dentes, mordo-lhe o pescoço e introduzo a língua no seu ouvido esquerdo, aí verto sem dizê-las algumas das palavras que anseio por dizer, ele torna a mover-se e fica novamente voltado para mim. Em ti! Levanto-me do chão, olho o temporal através da janela gradeada. Fico à espera de que o raio é o trovão derrubem-me outra vez. Estremece o espaço e as paredes luzem, azuis, sob os relâmpagos. Raios cindem os ares; os trovões estalam como se fossem arrancados do chão com os alicerces. Acelera-se o vento, zunindo nas quinas, nos tetos, nas antenas e nos anúncios fincados sobre os prédios. Parece um eco dos trovões ou seu prolongamento. Sento-me no velocípede e giro, regiro em torno da mesa, a mesa de centro, na sala (sobre a mesa há um vaso de metal sem flores, baço), giro devagar entre as cadeiras, e o vaso niquelado, posto sobre um velho pano de crochê, é o centro do meu giro, o centro. Sempre mais forte, açoitada pela ventania, cai a chuva. Minha mãe aparece, de pantufas, com um velho roupão de seda negra, à cabeça um chapéu rubro de abas muito largas e na mão um chapéu branco, ornado de flores. Passa pela sala (não me vê?), passa, deixa atrás de si o perfume intenso e cáustico de que vive embeida. A vidraça está molhada e por todas as brechas sopra - o vento, por todas, em todas as direções, com ímpeto, uiva e sacode-se, cão invisível. Espectros de forma cúbica, os edifícios, apagados pelas águas, têm a mesma cor e parecem adquirir consistência idêntica à das nuvens. Ratos são expulsos dos buracos, correm estonteados no assoalho, surgem baratas de asas levantadas, sobem nas cadeiras e esvoaçam. Todas as pessoas desapareceram nas ruas alagadas e desertas, só alguns veículos trafegam. Avançam devagar. Ouço três badaladas, três, lúgubres e como que sem vida, o sino de São Bento, e em redor do vaso meu giro continua. Bátegas de chuva golpeiam vidros e esquadrias. Amiúdam-se os relâmpagos, murros nos meus olhos; parecem queimar o papel marrom da peça, crestar suas flores encardidas. De súbito, de súbito, tudo se unifica: em direção oposta ao giro do meu velocípede, a ave negra de cabeça vermelha está girando, gira sobre a cidade e a tempestade, desce, imperturbável, voa através de ventos e relâmpagos, seu giro (cada vez mais baixo, cada vez menor) opõe-se ao meu e também responde ao meu giro e o completa. Desce e restringe-se. Instigada, alargo a minha órbita, afasto-me do vaso, da mesinha, passo por trás das cadeiras, do sofá, alargo a minha órbita. Em algum ponto da casa a mulher põe-se a gritar: gritos compassados, numa sucessão aterradora. Pedalando mais rápido, saio da sala, a porta da saída está aberta, escuro o saguão, ouço atrás de mim passos e brados, asas agitadas, brilha um relâmpago, entrevejo num relance, também aberta, a porta gradeada do ascensor, aberta para o poço, para o oco, o oco dos enigmas. Da minha garganta, até então silente, durante anos silente, sai um grito, acelero o velocípede e atiro-me, nasço, precipito-me, precipitamo-nos eu, rodas e gritos, já não sei se meus, não sei se da mulher, não sei se nossos, ou ainda do pássaro, não sei, precipitamo-nos. A mulher, sentada junto ao leito, mãos sobre os joelhos, bem aberto no colo o roupão de seda negra. Reconheço-a e também a desconheço. Todas as coisas são novas e simultaneamente familiares; eu e o mundo, tendo mudado, continuamos os mesmos. Ela se ajoelha, descobre o seio, aproxima-o do meu rosto. Murmura sem cessar, um som monótono. Tomo o seio entre as mãos, sugo-o, o leite (ou o seio?) desce-me pela garganta, um fio insere-se entre mim e as coisas, entre uma coisa e outra, sugo o peito, o leite, o murmúrio continua, e eu ingresso em um ciclo de que não suspeitava, tenho acesso ao ciclo da identidade, da delimitação - no murmúrio da mulher junto à cama reconheço o meu nome e mergulho outra vez na escuridão.

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