UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O21]

Em frente ao Cine Metro, à tarde, último domingo de agosto, eu esperando em vão Inácio Gabriel. Respostas evasivas no cartório aos meus telefonemas. Inácio Gabriel sobre o lençol (o desespero de saber que ele agoniza e morre a poucos passos de mim, na Santa Casa), Inácio, as mãos cruzadas sobre o peito franzino, vestido como se fosse ter comigo, porém com os pés descalços. Há uma vela acesa a cabeceira da cama e um homem chora em silêncio, de costas para mim. Pela janela aberta vejo algumas árvores, altos edifícios, uma construção em andamento, o céu deste começo de setembro. Voa um pardal. Fizemos tudo, Inácio, tudo que podíamos? Dissemos tudo? Livros ilustrados existentes na biblioteca do avô, entre coleções encadernadas de jurisprudência e leis: Costumes dos Insetos, The Sea around us, La vie des Araignées. Inês, quando lhe falo dos costumes e variedades dos escaravelhos: nada devo temer, meu quarto é protegido contra insetos. Responder-lhe? Volto em silêncio aos livros ilustrados. Diga-me, Inácio por que assumem sempre a forma de retângulo as passagens através das quais exercitamos nossas investigações do mundo? Retangular o formato das janelas, das portas, dos quadros, e até no rolo de papiro já a escrita se organiza em página: em retângulo. Ele, do seu retângulo escuro: - Em muitos quadros (expressões, com o seu formato retangular, de tentativas de acesso ao mundo) desenha-se outra janela, outro retângulo. Eu, dentre os vivos: - Neles, o contemplador vê duas vezes, ou melhor, vê três vezes — o que está no retângulo do quadro, o que se descortina além da janela aí representada e ainda, através de tudo isto, a infinitude das coisas. Inácio Gabriel sorri e abre uma janela que não há. Fizemos tudo, Inácio? Dissemos tudo? Não. Mas o pássaro, este, o inquieto pássaro que em mim fazes surgir e cujo nome, sei, é Avalovara, não emudece, nem parte, nem morre corn a tua morte. Mesmo quando desabafo com Inês, mesmo quando o faço e ela me diz que não se morre, que não se morre, fica-se encantado, mesmo al, quando grito, cuspo na cara de Inês que a morte é a morte, que tu estás morto e que nenhum encantamento poderá fazer com que nos encontremos outra vez em qualquer outra tarde de domingo, mesmo quando grito estas palavras — não estas, outras, semelhantes a estas, talvez mais brutais, decerto mais comovidas —, corn tanta violência que a minha avó acorre e pergunta o que há e ordena-me silêncio, mesmo nesse instante sei que o Avalovara me guarda e transmite um pouco da tua condição: das suas plumas vistosas, do seu canto secreto. A música de Orff, cortada pelo rumor dos nossos beijos, dos meus suspiros fundos. Carta de Catullo à puta Ipsitilla: Permanece em casa, Ipsitilla, sem falar, espera-me, usa tuas artes e atavios, para que nove vezes o sacrifício amoroso seja por nós consumado! O comprimento da sala tem talvez o duplo da largura; das duas janelas laterais, só uma está aberta: desse lado fica a mesa; onde estamos, estendidos sobre o tapete, próximos a outra janela, ninguém pode ver-nos. Com a mão esquerda Abel compraz-se em sondar a resistência do meu peito direito e do peito mais novo que cresce dentro do outro. Tenho a perna direita flexionada, a coxa repousando no seu flanco. Com isto, o pênis, que pressiono com a mão direita lançada para trás, sobre as minhas próprias nádegas, adere a minha vulva. Não recebemos a luz diretamente. Há, em toda a peça, uma claridade umbrosa e azulada. No ponto em que nos buscamos, essa claridade, embebida nos reflexos dos móveis, dos vidros, das paredes, unta as nossas peles numa espécie de verniz intangível e vagamente dourado. Inês, curvada sobre a mala, no seu quarto, voltada para mim e tentando sorrir. Não corresponderei a esse riso crispado. Ela cumpriu a obra para a qual foi paga e agora vai partir. Estou sem garras, corroído pela sedução de Inês o esporão que trago na cabeça ou em outro ponto do meu corpo. Debato-me ainda, mas me debato em vão e com receio — eis a verdade — de que as portas se abram (para onde, afinal?), debato-me para ainda mais convencer-me de que sair é impossível. A avó sabe disto; e manda Inês embora. - Que fiz eu? - Não preciso mais dos seus serviços. - Posso ficar mais uns dias? Enquanto procuro outro emprego. - Não. Vá arrumar suas coisas. Você certamente tem economias. Pode ficar em pensão. A porta do seu quarto, no térreo, aos fundos, vejo-a fazer a mala. Apetrechos de costura, perfumes baratos, sua fotografia ao lado dos patrões e da criança que agora, adolescente, olha-a da porta. Alisa com as pontas dos dedos a roupa que vai pondo na valise. Tem-se a impressão de que a fazenda é feita de teias de aranha. Discretamente, guarda um vidro escuro, envolvido em folhas de plástico e cujo rótulo percebo: Inês começa a disfarçar em segredo os primeiros fios brancos. O quarto tern um odor peculiar, misto de inseticida e pó-de-arroz. Durante quantos dias perrnanecerá no ar essa mescla discordante? (A ala envidraçada do primeiro andar. As duas cadeiras de vime e os dois viveiros de pássaros, sempre bem limpos — sem pássaros. Inês dirigindo-se com voz de falsete aos pássaros que não exitem, dando-lhes água e alpiste. Como se tudo isto não bastasse, vez por outra faz morrer um dos pássaros, e enterra-o no jardim com uma colher de pedreiro, e passa o dia triste). Põe de lado os vestidos brancos de trabalho, um deles está sujo. - Não sei se devia lavá-lo antes de ir embora. Olho-a com firmeza, pedra, olho-a, instrumento gasto ou que começa a tornar-se obsoleto, Inês, essa almotolia, sempre vertendo óleo sobre as juntas das coisas, olho-a — uma empregada sendo despedida, arrumando seus troços. Apanho a tesoura na mesa de cabeceira, apanho-a pela ponta e ofereço-a a Inés. Não digo mil nem til. O gesto. O silêncio. Olha-me assustada e leva a mão à boca; os incisivos aparecem entre os seus lábios curtos. Um riso sufocado e a hesitação: - Não... Que é que ela vai dizer de mim? Mas também estende a mão e recebe a tesoura. Corta em dois o vestido que tenciona lavar. Corta-o em dois, em quatro, em oito, vinte pedaços, pica-o, os fragmentos caem no chão de cerâmica vermelha, na sua mala, na cama patente, na mesa de cabeceira, na cadeira de vime, ela executa com método a operação, mostrando a espaços os incisivos (mas agora tem algo das presas de um cão que ameaça morder), não há mais o que cortar, ela fecha a mão sobre a tesoura, senta-se na cama, hesita, levanta o braço — são quatro horas da tarde e faz calor -, golpeia o colchão, três, quatro vezes. Deixa a tesoura enfiada no lugar ocupado, durante anos, pelo centro do seu corpo ósseo e solitário. Penteia os cabelos, outra vez com gestos leves, como se fossem cabelos de boneca ou estivessem mal pregados no casco. Prende-os em tranças. Não, em trancinhas. Sorrindo, ainda assustada, apanha a mala e sai. Se quisesse, não teria de quem despedir-se: meu avô está no Tribunal, minha avó está no quarto. Sai pelo jardim, abre o portão, fecha-o, olha hesitante para os lados, toma uma direção qualquer, a esmo, um pouco curvada ao peso da mala. Sobre meu braço esquerdo, sua cabeça (leve, não obstante a impressão de peso e de volume); seu braço direito sob minha axila. A persistente e hábil pressão, em minha língua, de seus dentes grandes e espaçados. A planta do meu pé esquerdo brandamente pousada sobre o dorso do seu pé direito. Ingratidão é o prêmio do mundo — dizem em alguma parte os cantores. Mas eu sou grata, eu sou grata, não na boca, e sim em toda a minha carne, a tudo que purgo para chegar a este minuto, a intensidade corn que responde meu corpo a aproximação do corpo deste homem, a força com que meus quadris o arrastam para mim, ao modo como nos povoam o bosque e a fauna ligeira do tapete, a cega ânsia com que nos abraçamos, a temperatura desta hora, que me permite ostentar minha nudez e embeber-me na sua como se os meus olhos fossern bocas e eu morresse de sede, e vê-lo desnudo me dessedentasse e intensificasse a minha sede. Também sou grata ao surdo e polido fulgor de nossos corpos. Ele me olha em silêncio, olha-me de perto (o azul estriado de ouro dos seus olhos) e sua mão esquerda, descendo pelo ventre, toca-me a parte interna das coxas. Eu abro as narinas, eu abro os olhos, eu abro a boca, ou abro os braços, eu abro as mãos, eu abro os poros, eu abro a garganta, eu abro as artérias, eu abro um espaço, eu abro passagem, eu abro as alas, eu abro as asas, eu abro uma fruta, eu abro uma lucama, eu abro as janelas, eu abro um portão, eu abro uma rua, eu abro uma clareira, eu abro uma vereda, eu abro uma estrada, eu abro urna fenda, uma vala, um sulco, uma cova, um rego, uma frincha, uma brecha, as pernas, abro as pernas, as coxas, os pés, os joelhos, abro o sexo e ele invade a minha carne. Lanço um grito de júbilo. Meu avô na grande cama de casal, inerte, as pernas estendidas. À direita, junto à cabeceira, o abajur aceso, com um pano de crochê lançado sobre a cúpula para atenuar ainda mais o clarão ocre da lâmpada, esbate a sua figura. As pessoas em torno, inclusive o desconhecido cujas unhas caprinas aparecem mal disfarçadas sob as calças e que acompanha a ânsia do velho em seu leito mortuário como se lesse o nome e a data inscritos no túmulo de algum parente distante, todos estão meio dissolvidos nessa luz. Também os móveis a estante envidraçada, cheia de livros não lidos, o guarda-roupa com uma das portas meio aberta, a cômoda corn engastes de bronze cinzelado. A face do avô é o centro irresistível desta cena. Cobre-o o lençol dos pés a altura do esterno e não se sabe a que insensato hábito atendem os seus chinelos, sobre o pequeno tapete cinza a esquerda do leito: todos os seus passos na vida estão saldados — e ele, mais do que nós, sabe disto. As mãos no peito, o corpo alongado e já parcialmente em pó (devoram-no os vermes da agonia), a postura dócil, afim a que se impõe aos defuntos, pois também nisto nos regem as repetições, representam um dos modos possíveis de grafar a palavra “capitulação”. Ele toma a forma cerimonial dos mortos a postura exigida para os mortos. Assim está Inácio Gabriel quando o vejo sem vida. O combate é longo, desigual e nem sequer pode-se dizer à adversária: “Rendo-me.” Ela tem a sua hora, as suas sutilezas. Um ritual. Deus nos cria, Inácio? Se nos cria, larga-nos, esquece-nos depois, decrepitude e morte são problemas nossos. Eu os criei; agora, danem-se. Eis, disto, a prova e o testemunho, este animal consumido. E só, entregue a si mesmo, não obstante os que o cercam e olham com impaciência, ajustar as suas contas sem viso de esperança, opor seu curto fôlego aos leões da morte. Quarenta ou mais arquejos por minuto. O peixe emerge das profundezas, salta sobre a linha do mar e volta as águas. Meu avô abre os olhos, mas não volta a cabeça: olha em frente, olha a parede, tudo o que vê ainda do vasto e variado mundo é este pedaço de parede, olha este pedaço de parede e está sério como se lesse os autos da sua própria existência.

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