UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O14]

Meu pai, em silêncio, a corneta de chifre sobre o peito, cola clichês num álbum. Sem mais acesso a atrizes e cantores que se apresentem no Municipal e não podendo abdicar por completo desse mundo, não se desfaz do piano, instrumento que jamais chega a tocar em público (na fotografia, empunha uma viola) e mantém um álbum de celebridades, com retratos cortados de jornais. Minha mãe, às voltas com as suas encomendas de chapéus, ocupa outra poltrona. Na penumbra da sala, escurecida pelas nuvens espessas que se formam, suas pernas lustrosas. Suspicaz, olho para um e para outra, vou à porta que abre para os corredores, para as escadas e os elevadores desregulados. Dou volta à chave, saio. Dos dois, na sala, nenhuma palavra. Nenhum gesto. Engano-me supondo haver pressentido, entre ambos, um rápido olhar de expectativa? Vou até ao elevador, o mesmo elevador em que me precipito com o velocípede, chamo-o; não o utilizo; volto, fecho a porta e retomo meu lugar no sofá. Ambos de olhos baixos. Meu pai tem nas mãos a fotografia que corta no instante em que eu saio; minha mãe continua a prender no chapéu a mesma flor de cambraia alaranjada. São meus pais? Ou são meus assassinos? Olho-os, com o meu dúplice olhar, sinto-me protegida e ao mesmo tempo irada, mas também trespassada de terror. Escondo a mão direita sob a coxa, movo-a como se moesse uma rolha de cortiça. Trituro entre meus dedos, sob a coxa, os indícios das últimas semanas. Mais do que outros, este: voltando de um passeio nos outros pavimentos do edifício, encontro a porta fechada; calco o botão da campainha, bato na porta com os "pés, a porta custa a abrir-se, enfim abre-se, e minha mãe quando abre não olha na altura dos meus olhos, olha três palmos acima dos meus olhos, na altura do seu rosto, do rosto de um adulto. Por quê? Sou injusta em supor que adivinho? Espera que venham trazer a notícia da minha morte. Os indícios coincidem, as negligências: chaves nas portas e telas de aço que um pardal esburaca. Levo a mão à boca e mordo esta certeza, este espanto, esta amargura, este ódio, esta ira, levanto-me e decido-me, não guardarei silêncio, porei termo ao silêncio, vou falar, abro a boca, mas não é fácil falar, tenho a língua e a laringe cheias de teias de aranha, aspiro o ar e expiro-o, pela boca, com dificuldade, eles me olham, meu pai leva a corneta aos lábios, crispam-se no chapéu os dedos de minha mãe e eu grito, cuspo, vomito em suas caras: "Inrerno. Inrerno." O nome não é este, mas tenho de dizê-lo, o esforço me exaure, eu caio de joelhos, perduram os movimentos convulsivos e eu tento outra vez como quem tenta um salto, um mergulho, um passe acrobático, tento outra vez, agora com mais força, com mais ódio, e grito: "Inferno!" É a primeira palavra que libero, a primeira, volto a repeti-la, quatro, cinco vezes, de modo cada vez mais débil, depois me curvo, toco o chão com a fronte e caio em pranto. O me felicem!! A carroça do Sol roda conosco nos campos de Capricórnio. Como sou feliz, que feliz sou, eu envolvida no meu júbilo, oh! eu, feliz? eis-me feliz, o me felicem, o me felicem, Abel. Eu, feliz, ah! e te amo e estou nua, desprendidas as minhas cabeleiras e despojada de anéis, colares, brincos, braceletes, tudo, veste-me a minha nudez, só, os meus adereços são os bicos dos peitos, a cova do umbigo, os pêlos do púbis, as unhas polidas, estou nua e Abel sopra em meu ouvido que nenhum manto haverá tão esplendido, deito a cabeça, rindo, sobre meus próprios pulsos, alegre de exibir minha nudez, ele beija-me ombros e sovacos, roça o rosto em meu ventre, sinto a aspereza do queixo escanhoado. Que o meu corpo se entregue com toda a sua carga de animal. Durante séculos, trazem os navegantes, da Melanésia, aves empalhadas, de espantosa beleza, mas sem pés. Chamam-nas aves-do-paraíso e não é difícil acreditar tenham escapado do Éden no instante em que o portão se abre para a expulsão dos pecadores. Parecem vir do mundo privilegiado em que de prata - e não fulvo - é o pêlo dos leões, em que os peixes voam quanto querem e onde a Lua, todas as noites, surge acompanhada por um deslumbrante cortejo de pavões que se casalam em vôo. Em vôo, afirmam os navegadores, cruzam-se e incubam os ovos as aves empalhadas que trazem da Oceania. Na realidade, os selvagens que as vendem cortam-lhe os pés. Que eu não arranque os pés a esta hora de cambiante e lúcida plumagem: nela mergulhar com toda a minha carga de animal. Os melanésios, recusando admitir aquele pássaro como um ser terreno, aviltado pelas exalações do mesmo barro sujo em que vivem com os seus obscuros sonhos irrealizáveis e onde quase tudo apodrece, decepam-lhe os pés. Com o estratagema, as aves mortas são reenviadas às alturas, onde, mutiladas, permanecem, graças à cúmplice imaginação dos homens. Que eu não arranque os pés a esta hora. Rolamos no tapete, batemos com os flancos na mesa do centro, tombam a mesa e o bule de prata não polido, mais uma vez desço a mão pelo ventre de Abel, sopeso em minha palma o obelisco, o marco, o centro do seu corpo - encosto-o no meu rosto, roço-o com os cabelos soltos, beijo-o de leve e ouço-o: mariposas voam dentro dele, muitas, zumbem as asas inúmeras, tentam sair, cabeceiam nas paredes, tontas. Desde quando, com sua energia e suas mariposas, dirige-se para mim? Orgulho-me vendo-o erguido, rijo, em toda sua altura, de que em mim acenda a sua flama, de que nasça em mim seu engrandecimento. No meu corpo, nas promessas do meu corpo. A testa ainda no chão, começo a balbuciar. Meu pai e minha mãe acreditam que eu esteja possessa do demônio. Falo aos solavancos, sem pensar, sem nexo, minhas palavras são pus, minha boca um abcesso aberto, falo sem parar, às vezes murmurando, aos brados em seguida, e assim como antes muitas palavras se formulam em mim sem que as pronuncie, falo agora de coisas que estão fora do meu entendimento. Leio um dia em Virgílio que as nações submetidas a Roma, os dias de triunfo, jogos públicos, ovações, sacrifícios, coros de matronas, naus de guerra, deuses monstruosos e todas as batalhas, postas por ordem, aparecem no escudo fabricado para o filho de Vênus. Este, quando cinge a obra de Vulcano, ignora cingir os eventos e figuras de que participa a sua estirpe. As palavras que lanço em meu discurso sem-fim e incontrolável também representam a minha própria vida, embora ao proferi-las tudo eu ignore sobre isto; e ainda maior que a do Troiano é a minha ignorância, pois, ao contrário das batalhas cinzeladas em seu temível apresto de guerra, postas por ordem, os personagens e eventos a que devo ligar-me vêm fragmentados nas palavras, frases e nomes que enuncio, nomes, frases e palavras dos quais muitos voltam, são repetidos, pela manhã, à noite, nesses dias e noites em que falo e falo sem parar, quantos, quantas?, muitos, talvez três, talvez cinco, difícil saber, dias e noites em que quase não durmo e, mesmo enquanto durmo, ainda falo. Visitantes contristados olham-me de longe, nem sequer atrevendo-se a passar a porta do meu quarto, eu como pouco e mal, engolindo palavras, bebo apenas para refrescar a garganta dolorida, a voz extingue-se, exausta eu fecho os olhos e mesmo assim meus lábios secos continuam a mover-se, eu continuo a falar, dentro de mim, dos passeios com Inácio Gabriel, anunciador, antecipador deste homem a quem me entrego e amo, da adolescência vivida e revivida, dos nomes de pessoas que pesam em meu destino, dos enganos, da bala disparada e cravada no meu peito, da minha morte e, reiteradamente, do iólipo, o qual ninguém conhece e o qual descrevo com minúcias, sem nada entender e sem saber (saber como?) que um dia o encontro. A ele, um iólipo. lólipo?

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