UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O17]

Das minhas duas idades, eu o contemplo - com os quatro olhos abertos. Os cabelos castanhos, lisos, caem sobre a testa. Quando criança: menos escuros e enrolados em cachos. Fios prateados entre eles, principalmente nas têmporas, ampliam a fronte. Estranho, não é grande a cabeça, não maior que a de qualquer outro homem. Donde esta impressão de volume, peso e obstinação? Orelhas delicadas, quase transparentes, pequenas folhas castanhas e vermelhas insinuando-se entre as suas volutas. A sobrancelha grossa, negra, torna mais irônico e profundo o azul estriado de ouro dos seus olhos. Quando sorri, cerra as pálpebras e o azul se esconde mais ainda, intenso, duas chispas. Vagalumes. As fêmeas não têm asas, as fêmeas dos vagalumes, os machos sobrevoam-nas, brilham, elas ficam ao nível do solo, de dorso, esperam dois segundos e um décimo e só então respondem à luz do macho. Uma fração a mais e não serão entendidas; uma fração a menos e não serão entendidas. Dois segundos e um décimo. Meu duplo amor e meu desejo em dobro impedem-me de ver a sua boca. As linhas da boca, como se não existissem, desfazem-se a meus olhos, desfazem-se como se fossem apenas desenhadas, não posso ver seus lábios e tudo que sei, tudo, é que: cálidos, úmidos, e que decerto ouvem a minha pele, pois me pressionam levemente, ou com força, segundo os tortuosos caprichos do meu corpo. São grandes os dentes, um pouco espaçados e não muito alvos, são grandes mas escondem-se entre os lábios. De um certo modo solerte. A ironia diluída em cada ponto do rosto alcança inclusive o queixo largo, cortado por uma fenda. A fragilidade do tronco e o tom da voz absolvem essa ironia. O tronco frágil, com as folhagens e os bichos efêmeros que em nós se movimentam, induz-me a protegê-la, a protegê-la, e a voz rouca, velada, agitada por súbitos assomos de ebriez, é a de alguém que jamais terá o orgulho ou a ambição de ingressar no mundo dos dominadores, a voz de um homem que conhece, tendo-os acolhido e com eles convivendo, o medo, o infortúnio, a solidão, a piedade, o ardor e as interrogações. Inácio Gabriel é seu esboço, seu antecipador, Inácio Gabriel o anuncia. Três vezes minha avó me leva para a sua casa; três vezes volto sozinha ao Martinelli, a pé. Todas as vezes o mesmo ritual. Um jogo, uma repetição. Aparece de chapéu, pintada em excesso para a sua idade, longo colar de pérolas sobre o vestido negro; nas mãos, sempre desassossegadas, a bolsa e um pequeno chicote de cabo prateado, como se fosse passear a cavalo. Há em seu todo uma vaga evocação eqüestre. O modo de ocupar a poltrona, ereta, o peito alto ornado com o colar de pérolas, as pernas unidas e voltadas para a sua direita, de modo a ficarem de perfil, o que salienta a linha e o brilho ainda juvenis dos tornozelos, tão idênticos aos de minha mãe, tudo faz lembrar uma pessoa que cavalga à amazona. Abomino, desde a primeira visita, suas mãos inquietas e enluvadas de cinza, prendendo o inútil rebenque; e o seu vezo de falar voltando a face esquerda para mim, mesmo quando estou acima do nível do seu rosto, lançando-me um olhar dominador e rápido e examinador que parece sempre vir do alto de uma sela. Busco inutilmente em seus olhos o miúdo escorpião. Ela censura com acrimônia o prédio, queixa-se dos ascensoristas e lamenta a solidão em que vive, agora que sua única filha apodrece sob a terra. Minha mãe aceita a condição de morta, sabe estar morta para os pais desde o casamento. Faz, da tumba, dois ou três comentários suaves e malévolos sobre a irmã morta, assumindo um ar de extrema compaixão, e a espaços lança um riso, um grasnido nervoso, com o qual pensa dar idéia de uma pessoa que, desventurada, procura aparentar euforia. Minha avó corta o diálogo falso, cheio de intenções e de velhas cóleras indisfarçáveis: "Não quero que uma inocente expie as faltas alheias". Indica-me com o pequeno chicote: "Vista-a. Levo-a comigo". O trajeto para a minha nova residência, uma esquina da Marquez de Ytu próxima à Santa Casa, é lento e cheio de curvas. Minha avó fala e agita-se. Um pouco ridícula no seu porte ereto e oscilando no assento do automóvel, pois não concebe apoiar-se no encosto, acha sempre que o chofer vai rápido demais; causa-lhe prazer reencontrar as placas nas esquinas com nomes de parentes seus, sendo também por isto que ordena desvios no trajeto. Não admite que eu leve nenhum dos meus pertences, considerados inúteis e substituíveis, ignora que lentamente roda sobre a minha antiga cama o grande maquinismo invisível, o maquinismo, o que se assemelha a uma esquadra suspensa, o que capta os eventos e que mantenho em segredo. Na primeira noite, deitada, fecho os olhos, todo o meu corpo em silêncio - e aguardo-o. Virão os imensos navios girando em minha direção, em direção a esta casa, vagarosamente, através da noite e da cidade? A sensação de ausência e de abandono não seria maior se possuísse um cão e dele me houvessem apartado. Aguardo, aguardo a máquina, vejo as placas brancas e azuis nas esquinas das ruas, os cavalheiros no álbum de fotografias sobre a mesinha forrada de damasco carmesim, mãos nos bolsos, posando em extensões nevadas com árvores sem folhas (e também há grupos sorridentes de mortos, numa praia, em longos trajes de banho), vejo à mesa da sala de jantar uma fruteira branca com os figos que comi, meu avô num salão em penumbra, junto ao pesado rádio Telefunken, o olho mágico brilha verdemente na obscuridade da peça (são notícias da guerra na Europa), vejo as altas estantes e os livros com títulos dourados nas lombadas, vejo o piano Erard, coberto por uma ampla toalha de brocado, o piano junto ao qual minha mãe empena o seu destino, vejo a lamparina acesa no meu quarto, dentro de um copo vermelho, não há apenas o silêncio no mundo, o silêncio está em mim, no meu corpo vazio, é aterrador, eu me levanto, visto-me, salto a grade do jardim e fujo. As duas outras vezes fujo durante o dia. Doem-me os lençóis macios da Marquez de Ytu? Não, aquecem-me. Doem-me o banho morno e a água de violetas? Não, tornam-me leve. Nada me magoa nesta casa ampla, nem as grandes janelas por onde entra o sol de março, nem as cortinas franjadas, nem os móveis severos, muitos recobertos com toalhinhas de crochê, nem os lustres que lançam, quando acesos, sombras rendadas no teto e nas paredes com lambris de cedro, nem o piso recoberto com tiras de madeira bem polida, nem mesmo a sala onde fica o rádio de olho verde, ventilada apenas por olhos-de-boi e com falsas janelas pintadas na parede, ilusoriamente abertas sobre paisagens hibernais. No andar superior, a pintura das paredes tende a descascar, alguns quartos são polidos e arrumados, enquanto outros parecem envelhecer, cheios de móveis desencontrados, montes de revistas estrangeiras de 1912 e recipientes de perfumes tão antigos que só cheiram a passado. Não me aflige também esta presença de ruína e de detritos em uma casa onde até as escarradeiras de louça têm algo de faustoso. Por outro lado, o Martinelli fere-me. Com o seu bolor, seus elevadores quebrados e suas janelas fuliginosas, abertas com a função de iluminarem as escadas e que parecem dar para buracos em um mundo onde nunca amanhece. Mas há um parentesco, eu sei, entre mim e as suas paredes encardidas, entre mim e o velho ascensorista com um gancho na ponta de um pau para abrir a porta gradeada do elevador, e as janelas escuras que dão para o escuro e principalmente entre mim e a doida multidão que transita ou vive nos seus muitos andares, calada, maldizendo, roubando ou sendo roubada - e que, sem o saber, afia as minhas garras. Por isto, volto e logo que volto os corredores tornam a ouvir meus passos. Num dos andares, agora, toda uma ala é vedada por uma grade de ferro pintada de alcatrão, um portão, com cadeado e corrente. Eu fico no portão, gritando para dentro, para a ala deserta e isolada, ninguém atende e contudo meus gritos não me parecem perdidos, não me parecem sem resposta os gritos sem resposta, no Martinelli nada me parece inútil, cada grito que eu lanço, cada passo que eu dou nos degraus corroídos das escadas, conduz-me, é o que eu acho, a uma culminação. Na casa da Marquez de Ytu, ante os álbuns de fotografias e os consolos com tampo de mármore, o mundo se reduz e murcha para mim. Nesta casa, com ciprestes ladeando o portão e salas numerosas, algum esporão está sendo amaciado em mim (no calcanhar?, na língua?), em algum ponto do corpo, está sendo polido, sou podada na violência que em mim se ramifica. Na quarta vez, espera-me ao portão, com vestes alvas de pajem, figura leve e adejante, alguém cujo emprego é seduzir-me. Chama-se Inês e não precisa esforçar-se para executar sua incumbência. A sedução escorre de cada gesto seu, de cada frase, Inês ama o ar e a terra, ama os leões soltos, os cães sarnentos, o gume das navalhas, os algozes, teria uma palavra e um olhar afáveis para o carrasco e o machado se condenada à morte. Olha-me dentro dos olhos, afetuosamente, dando-me sempre nomes novos, Amália, Creusa, Sofia, Cristina, Maria Alice, a cada novo nome eu sinto-me atingida, cada novo nome parece mais profundo, uma incursão no cerne do meu ser. Inês vai inventando outros nomes, como se tivesse a esperança de vir a descobrir o meu nóme real, não o de registro ou de batismo meras aparências -, mas o meu, o verdadeiro, o que eu própria ignoro e que lhe consinta realmente penetrar em mim, abra-me, um nome que seja como o segredo de um cofre.

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