UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial. No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor. |
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Das minhas duas idades, eu o contemplo - com os quatro olhos abertos. Os cabelos castanhos, lisos, caem sobre a testa. Quando criança: menos escuros e enrolados em cachos. Fios prateados entre eles, principalmente nas têmporas, ampliam a fronte. Estranho, não é grande a cabeça, não maior que a de qualquer outro homem. Donde esta impressão de volume, peso e obstinação? Orelhas delicadas, quase transparentes, pequenas folhas castanhas e vermelhas insinuando-se entre as suas volutas. A sobrancelha grossa, negra, torna mais irônico e profundo o azul estriado de ouro dos seus olhos. Quando sorri, cerra as pálpebras e o azul se esconde mais ainda, intenso, duas chispas. Vagalumes. As fêmeas não têm asas, as fêmeas dos vagalumes, os machos sobrevoam-nas, brilham, elas ficam ao nível do solo, de dorso, esperam dois segundos e um décimo e só então respondem à luz do macho. Uma fração a mais e não serão entendidas; uma fração a menos e não serão entendidas. Dois segundos e um décimo. Meu duplo amor e meu desejo em dobro impedem-me de ver a sua boca. As linhas da boca, como se não existissem, desfazem-se a meus olhos, desfazem-se como se fossem apenas desenhadas, não posso ver seus lábios e tudo que sei, tudo, é que: cálidos, úmidos, e que decerto ouvem a minha pele, pois me pressionam levemente, ou com força, segundo os tortuosos caprichos do meu corpo. São grandes os dentes, um pouco espaçados e não muito alvos, são grandes mas escondem-se entre os lábios. De um certo modo solerte. A ironia diluída em cada ponto do rosto alcança inclusive o queixo largo, cortado por uma fenda. A fragilidade do tronco e o tom da voz absolvem essa ironia. O tronco frágil, com as folhagens e os bichos efêmeros que em nós se movimentam, induz-me a protegê-la, a protegê-la, e a voz rouca, velada, agitada por súbitos assomos de ebriez, é a de alguém que jamais terá o orgulho ou a ambição de ingressar no mundo dos dominadores, a voz de um homem que conhece, tendo-os acolhido e com eles convivendo, o medo, o infortúnio, a solidão, a piedade, o ardor e as interrogações. Inácio Gabriel é seu esboço, seu antecipador, Inácio Gabriel o anuncia.
Três vezes minha avó me leva para a sua casa; três vezes volto sozinha ao Martinelli, a pé. Todas as vezes o mesmo ritual. Um jogo, uma repetição. Aparece de chapéu, pintada em excesso para a sua idade, longo colar de pérolas sobre o vestido negro; nas mãos, sempre desassossegadas, a bolsa e um pequeno chicote de cabo prateado, como se fosse passear a cavalo. Há em seu todo uma vaga evocação eqüestre. O modo de ocupar a poltrona, ereta, o peito alto ornado com o colar de pérolas, as pernas unidas e voltadas para a sua direita, de modo a ficarem de perfil, o que salienta a linha e o brilho ainda juvenis dos tornozelos, tão idênticos aos de minha mãe, tudo faz lembrar uma pessoa que cavalga à amazona. Abomino, desde a primeira visita, suas mãos inquietas e enluvadas de cinza, prendendo o inútil rebenque; e o seu vezo de falar voltando a face esquerda para mim, mesmo quando estou acima do nível do seu rosto, lançando-me um olhar dominador e rápido e examinador que parece sempre vir do alto de uma sela. Busco inutilmente em seus olhos o miúdo escorpião. Ela censura com acrimônia o prédio, queixa-se dos ascensoristas e lamenta a solidão em que vive, agora que sua única filha apodrece sob a terra. Minha mãe aceita a condição de morta, sabe estar morta para os pais desde o casamento. Faz, da tumba, dois ou três comentários suaves e malévolos sobre a irmã morta, assumindo um ar de extrema compaixão, e a espaços lança um riso, um grasnido nervoso, com o qual pensa dar idéia de uma pessoa que, desventurada, procura aparentar euforia. Minha avó corta o diálogo falso, cheio de intenções e de velhas cóleras indisfarçáveis: "Não quero que uma inocente expie as faltas alheias". Indica-me com o pequeno chicote: "Vista-a. Levo-a comigo".
O trajeto para a minha nova residência, uma esquina da Marquez de Ytu próxima à Santa Casa, é lento e cheio de curvas. Minha avó fala e agita-se. Um pouco ridícula no seu porte ereto e oscilando no assento do automóvel, pois não concebe apoiar-se no encosto, acha sempre que o chofer vai rápido demais; causa-lhe prazer reencontrar as placas nas esquinas com nomes de parentes seus, sendo também por isto que ordena desvios no trajeto. Não admite que eu leve nenhum dos meus pertences, considerados inúteis e substituíveis,
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