UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O5]

Cessa de beijar-me os peitos, desliza do sofá, ajoelha-se e, com mãos de consertar relógio, de colher violetas, de pensar ferimento, de enfiar avelórios em barbante, descalça-me os sapatos e contempla, através das meias transparentes, o dorso dos meus pés, os dedos miúdos, as unhas polidas e que talvez rescendam ainda a esmalte. Será verdade o que diz? Que jamais viu pés tão delicados e calcanhares mais tenros? Isto me diz e outras coisas amáveis, no seu jeito nordestino de falar, as inflexões de Inácio Gabriel, as mesmas, conquanto menos acentuadas e além disto a sua voz comovida parece ocultar certo grau de zombaria. (Como Inácio Gabriel, que te anuncia, sabes, sabemos, Abel, que as doações têm exigências e que não é bastante abrir as mãos, os braços, as pernas, olhos, boca, ouvidos, não basta existir para bem receber, sabemos que receber é acolher, guardar, multiplicar e também devolver, sim, sabemos.) Chegam ruídos da rua e o relógio avança. Diversamente os ouço, dos meus trinta e dois e dos meus vinte e três anos. Dúplice, em meus pés, o hálito da sua boca: eu, uma mulher e duas, dois corpos unos que só eu conheço verdadeiramente e que de dois pontos distintos, de duas idades, agem, contemplam e fruem. Cada vez, Abel, que me beijas os joelhos, duas vezes o fazes. Serás capaz de ver as letras, as palavras que, em certas horas, vejo ainda rastejarem sob a minha pele e que, decerto, nunca silenciam? Ouço-as, dentro do meu corpo, ouço-as, vozerio distante, multidão agrupada numa praça, não como se eu na praça estivesse, e sim como se fosse a praça, o murmúrio das palavras ecoa em minhas coxas, nos meus peitos, no ventre, flui e reflui, continuado, não sei se alegre, não sei se feroz, flui, como se os limites do meu corpo fossem os limites da praça, e meus ombros e axilas fossem abóbadas onde chegassem os últimos ecos das vozes, e os meus braços - que estendo - fossem extensões da praça, avenidas também cheias de vozes. Volta a sentar-se e recomeça a desabotoar-me a blusa, sempre com mãos sutis. Talvez não fique bem em mim a musselina, talvez o meu corpo exigisse tecidos mais espessos. Basta, no entanto, que a temperatura suba mais um pouco para que eu tire do armário os vestidos leves. Apraz-me este esvoaçar de saias amplas, de golas pregueadas, de mangas pendentes. Suspende o peso do meu peito, busca o mamilo com as extremidades dos dedos, eu encolho as pernas. Minha mão direita, movendo-se autônoma e por si, aperta seu joelho e sobe pela coxa. Desde quando caminhamos para este momento? Ninguém sabe em que ponto do mundo os ventos são gerados, quem os dá à luz ou à escuridão, quem é a mãe dos ventos e por quem foi criada. Os começos jazem na sombra.

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