UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial. No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor. |
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O casaco marrom, de pele, guardado numa caixa cilíndrica e protegido com inúmeras folhas de papel de seda, cheira mais a cânfora que o vestido negro. Seus pêlos lembram os de um velho cão empoeirado. Ela o põe sobre os ombros e assenta à cabeça um chapéu novo, também negro e com véu. Pende da parede o espelho, parecendo uma moldura a mais, vazia, entre os retratos de empresários, prima-donas, músicos; não é grande e tem uma ligeira inclinação, de modo que um adulto, para examinar-se da cabeça aos pés, tem de avançar e recuar diante dele. Meu pai está no banheiro, ouço-o puxar a descarga. A mulher, indo e vindo, observa o chapéu, a pintura e o casaco ruço. Acho-a semelhante ao edifício, com as paredes riscadas de lápis, os elevadores enguiçados e os cheiros vagando como animais doentes pelos corredores. Estou junto ao piano, orgulhosa do meu vestido negro e de estar penteada. Ela se volta e ordena-me: "Venha". Meu pai entra no quarto, ainda abotoando as calças, leva a corneta à boca e dá uma gargalhada. Um giro da mulher, tão rápido que a aba do casaco bate no meu rosto:
- Não torne a fazer isso.
Parece haver saltado de dentro de si mesma. Ele recua ante o gesto agressivo e inesperado, hesita um segundo e assesta a corneta de chifre sobre nós:
- Por que não faço?
- Quando você estiver dormindo, corto-lhe a outra orelha. Só.
Maior o contraste entre a pele rosada e o torpe artefato de borracha. O homem deixa cair a corneta sobre o peito. Ela, ríspida, me toma pela mão, bate a porta e leva-me à igreja. Ela me conduz por cálculo, ela me expõe, como um pedinte expõe os olhos vasados. Com o fito de comover.
Este é o seu plano. Mas os planos continuam além das previsões, seguem além das previsões, de toda previsão e mordem a cauda. Quando ela me impede, no apartamento, de cair para que eu não morra, eu tombo no poço do elevador quebrado, e nasço; quando, deixando as chaves nas portas, invoca armadilhas para que eu me arrebente de uma vez por todas, capto essa intenção e mato-a em mim, mato em mim pai e mãe, esses dois emissários;
A igreja está cheia e isto embaraça o plano. Contudo, só a porta lateral direita, que talvez não chegue a um metro de largura, está aberta; mantém-se fechada a porta central, para que o vento não apague as centenas de velas dispostas lado a lado sobre longas mesas inclinadas. Por que não ficar junto à estreita porta lateral ou nos degraus da escada que lhe dá acesso? Será vista por todos que entrem ou saiam. Minha mãe, mal terminada a missa, esgueira-se e mantém-se nesse ponto, à espera. Quer que o encontro desejado pareça casual. Mas, se a igreja só dispõe de uma saída, são inúmeras as de que dispõe o instante. Assim, eu escapo e volto à igreja. Não para ver os anjos com trombetas sobre o altar-mar, as quatro igrejas pintadas nas paredes do átrio ou os redondos vitrais de cor sombria, postos no alto, no lugar das lucarnas, pouco abaixo do teto com pinturas e realçados pela luz exterior. Atraem-me, antes, o fogo e os bichos que existem lá dentro. O fogo das velas, do azeite, do incenso. A pomba que esvoaça de um vitral para outro, a tainha nova que se move e nada na pia batismal, o carneiro que bale entre as pernas das pessoas, o touro que não sei onde muge e que espero descobrir, a águia cuja cabeça impiedosa se ergueu no púlpito um instante, dardejando-me com seu rude olho onde brilha o reflexo dos fogos, o leão invisível que está deitado por baixo de algum banco e do qual eu sinto o cheiro forte, um cheiro semelhante ao que há no Martinelli. Minha intenção é ver os fogos de perto, e procurar esses entes, e mais a criança ornada com asas, de rosto senil, postada junto às velas. Mas esqueço tudo: uma mulher está diante de mim. Vejo-a durante a missa, chorando em silêncio, é uma mulher de idade, mas tem as pernas ainda bem torneadas. As pernas da minha mãe. Está de luto, junto a um homem de luto, mais velho do que ela. O homem fixa o padre, limitando-se a passar a grandes intervalos um lenço na cabeça. Cabelos brancos, raros. Sua mão é forte e inspira confiança. A mulher firma-se num pé, no outro, deixa o missal no banco e volta a apanhá-lo, assoa-se, abre e fecha a bolsa. Não encontra a posição adequada para o véu: puxa-o para a frente e logo deíxa-o cair sobre o pescoço, descobrindo-se. Vejo-a de costas. Agora, tenho-a à minha frente, vejo-a de frente e esqueço a pomba, o mugido do touro, os fogos, o cheiro do leão: flutua, no seu olho esquerdo, um diminuto escorpião dourado. Sigo-a fascinada. Minha mãe, buscando-me, entra na igreja e nós nos encontramos, encontramo-nos os quatro, eu, ela, a mulher com o pequeno lacrau no olho e o homem de cabelos brancos, encontramo-nos todos junto às centenas de velas. Começando a chorar, mas sem convicção, minha mãe adianta-se para a mulher, que tem um movimento discreto de recuo e olha-a. De cima a baixo, com seus olhos injetados. O olhar se desvia um nada nesse rápido baixar e erguer de pálpebras, o olhar me abrange. Abraçadas, minha mãe com energia, ela de um modo frio e complacente. Minha mãe abraça o velho. Ele retribui com indulgência e dirige-lhe a palavra, sim, fala com ela, olha-a no rosto, somente no rosto e não há nenhum dissimulado exame nesse olhar onde leio resignação, franqueza e um pouco de estultícia, um pouco. Volta-se para mim e estende-me a mão. Beijo-a? É um jogo de dados, par ou ímpar?, tudo depende das alternativas e contudo a definição está predita, eu prevejo, eu descrevo a opção e suas conseqüências durante as horas em que falo e falo sem parar. As previsões? Ou não há previsões? Quem sabe coexistem, as previsões, com os fatos revelados, refletindo-os, sim, refletindo-os através de condutos que são misteriosos para nós?
Junto ao velho casal há quatro ou cinco jovens, igualmente de luto. Minha mãe, segurando-me sempre pela mão, esgueira-se entre eles e o casal, esgueira-se e recebe condolências. Parece alegre. Logo restam apenas o casal e os jovens, todos com aspecto indeciso. Um pouco à margem, eu e ela. Também os jovens se despedem do casal e afastam-se. Nenhum se volta para minha mãe, todos afetam não vê-la. Um carro se aproxima. A mulher, agora sem chorar, toca de leve no casaco que lembra um cão empoeirado e que minha mãe conserva sobre os ombros; lança novamente em direção a mim aquele olhar quase imperceptível e nem por isto menos analítico; entra com esforço no automóvel. Também o homem se volta para minha mãe e vai falar-lhe; de dentro do automóvel, a voz autoritária da esposa intima-o a apressar-se. Levanto minha mão, sorrio e despeço-me dele com um aceno. O automóvel parte.
O sol apareceu. Minha mãe despe o casaco; assusta-me a frieza que acabam de assumir seus olhos, pouco antes compungidos, súplices e amáveis. É a primeira vez que a vejo à luz crua do dia e o que mais me surpreende é a pele do seu rosto: alva, transparente e como friável, dando a impressão de desfazer-se. Não me parece impossível que, para empoar-se, tenha apenas de passar no rosto uma esponja ou uma lixa, empoando-se com a própria pele esfarelada. Sua pele então desfeita em pó sob o atrito da esponja, da lixa. É a primeira vez também que ela me vê ao sol e por isto talvez me observe com desgosto e cólera tão fundos, a expressão com que se olha para uma ferramenta com que tentamos, em vão, afrouxar um parafuso, arrancar um prego ou arrombar uma porta. Mas o parafuso, sem que ela saiba, já está solto, o prego arrancado, a porta arrombada.
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