UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O16]

O casaco marrom, de pele, guardado numa caixa cilíndrica e protegido com inúmeras folhas de papel de seda, cheira mais a cânfora que o vestido negro. Seus pêlos lembram os de um velho cão empoeirado. Ela o põe sobre os ombros e assenta à cabeça um chapéu novo, também negro e com véu. Pende da parede o espelho, parecendo uma moldura a mais, vazia, entre os retratos de empresários, prima-donas, músicos; não é grande e tem uma ligeira inclinação, de modo que um adulto, para examinar-se da cabeça aos pés, tem de avançar e recuar diante dele. Meu pai está no banheiro, ouço-o puxar a descarga. A mulher, indo e vindo, observa o chapéu, a pintura e o casaco ruço. Acho-a semelhante ao edifício, com as paredes riscadas de lápis, os elevadores enguiçados e os cheiros vagando como animais doentes pelos corredores. Estou junto ao piano, orgulhosa do meu vestido negro e de estar penteada. Ela se volta e ordena-me: "Venha". Meu pai entra no quarto, ainda abotoando as calças, leva a corneta à boca e dá uma gargalhada. Um giro da mulher, tão rápido que a aba do casaco bate no meu rosto:
- Não torne a fazer isso.
Parece haver saltado de dentro de si mesma. Ele recua ante o gesto agressivo e inesperado, hesita um segundo e assesta a corneta de chifre sobre nós:
- Por que não faço?
- Quando você estiver dormindo, corto-lhe a outra orelha. Só.
Maior o contraste entre a pele rosada e o torpe artefato de borracha. O homem deixa cair a corneta sobre o peito. Ela, ríspida, me toma pela mão, bate a porta e leva-me à igreja. Ela me conduz por cálculo, ela me expõe, como um pedinte expõe os olhos vasados. Com o fito de comover.
Este é o seu plano. Mas os planos continuam além das previsões, seguem além das previsões, de toda previsão e mordem a cauda. Quando ela me impede, no apartamento, de cair para que eu não morra, eu tombo no poço do elevador quebrado, e nasço; quando, deixando as chaves nas portas, invoca armadilhas para que eu me arrebente de uma vez por todas, capto essa intenção e mato-a em mim, mato em mim pai e mãe, esses dois emissários; agora, quando pretende me alçar ao nível do qual foi privada pelo casamento, encarnando assim palavras minhas ou simplesmente emitidas por mim (e que não evocam, antes antecipam, se é que antecipam, os seus passos calculados) começa a lançar-me em direção ao iólipo e à bala calibre 38 que alojo no meu peito. Esse momento, portanto, é grave, muito mais grave do que pode supor: parte do meu salto neste mundo dele irá pender, dele irá pender, como um relógio de algibeira, preso à corrente, pende de um prego enfiado na parede.
A igreja está cheia e isto embaraça o plano. Contudo, só a porta lateral direita, que talvez não chegue a um metro de largura, está aberta; mantém-se fechada a porta central, para que o vento não apague as centenas de velas dispostas lado a lado sobre longas mesas inclinadas. Por que não ficar junto à estreita porta lateral ou nos degraus da escada que lhe dá acesso? Será vista por todos que entrem ou saiam. Minha mãe, mal terminada a missa, esgueira-se e mantém-se nesse ponto, à espera. Quer que o encontro desejado pareça casual. Mas, se a igreja só dispõe de uma saída, são inúmeras as de que dispõe o instante. Assim, eu escapo e volto à igreja. Não para ver os anjos com trombetas sobre o altar-mar, as quatro igrejas pintadas nas paredes do átrio ou os redondos vitrais de cor sombria, postos no alto, no lugar das lucarnas, pouco abaixo do teto com pinturas e realçados pela luz exterior. Atraem-me, antes, o fogo e os bichos que existem lá dentro. O fogo das velas, do azeite, do incenso. A pomba que esvoaça de um vitral para outro, a tainha nova que se move e nada na pia batismal, o carneiro que bale entre as pernas das pessoas, o touro que não sei onde muge e que espero descobrir, a águia cuja cabeça impiedosa se ergueu no púlpito um instante, dardejando-me com seu rude olho onde brilha o reflexo dos fogos, o leão invisível que está deitado por baixo de algum banco e do qual eu sinto o cheiro forte, um cheiro semelhante ao que há no Martinelli. Minha intenção é ver os fogos de perto, e procurar esses entes, e mais a criança ornada com asas, de rosto senil, postada junto às velas. Mas esqueço tudo: uma mulher está diante de mim. Vejo-a durante a missa, chorando em silêncio, é uma mulher de idade, mas tem as pernas ainda bem torneadas. As pernas da minha mãe. Está de luto, junto a um homem de luto, mais velho do que ela. O homem fixa o padre, limitando-se a passar a grandes intervalos um lenço na cabeça. Cabelos brancos, raros. Sua mão é forte e inspira confiança. A mulher firma-se num pé, no outro, deixa o missal no banco e volta a apanhá-lo, assoa-se, abre e fecha a bolsa. Não encontra a posição adequada para o véu: puxa-o para a frente e logo deíxa-o cair sobre o pescoço, descobrindo-se. Vejo-a de costas. Agora, tenho-a à minha frente, vejo-a de frente e esqueço a pomba, o mugido do touro, os fogos, o cheiro do leão: flutua, no seu olho esquerdo, um diminuto escorpião dourado. Sigo-a fascinada. Minha mãe, buscando-me, entra na igreja e nós nos encontramos, encontramo-nos os quatro, eu, ela, a mulher com o pequeno lacrau no olho e o homem de cabelos brancos, encontramo-nos todos junto às centenas de velas. Começando a chorar, mas sem convicção, minha mãe adianta-se para a mulher, que tem um movimento discreto de recuo e olha-a. De cima a baixo, com seus olhos injetados. O olhar se desvia um nada nesse rápido baixar e erguer de pálpebras, o olhar me abrange. Abraçadas, minha mãe com energia, ela de um modo frio e complacente. Minha mãe abraça o velho. Ele retribui com indulgência e dirige-lhe a palavra, sim, fala com ela, olha-a no rosto, somente no rosto e não há nenhum dissimulado exame nesse olhar onde leio resignação, franqueza e um pouco de estultícia, um pouco. Volta-se para mim e estende-me a mão. Beijo-a? É um jogo de dados, par ou ímpar?, tudo depende das alternativas e contudo a definição está predita, eu prevejo, eu descrevo a opção e suas conseqüências durante as horas em que falo e falo sem parar. As previsões? Ou não há previsões? Quem sabe coexistem, as previsões, com os fatos revelados, refletindo-os, sim, refletindo-os através de condutos que são misteriosos para nós? As previsões, narrativas contempladas ao espelho, narrativas ao contrário, contadas no futuro. Pode ser que tudo exista simultaneamente e que tenhamos do tempo não uma idéia correta ou verdadeira, e sim uma que preserve a nossa integridade. Temos de crer que somos um ponto, não um traço reto ou sinuoso; apreendemos as coisas, não a soma de seus deslocamentos. Seja como for, o que eu digo entre dentes, nos exaustivos dias em que narro, aparentemente por antecipação, e de modo por vezes incompreensível, a minha própria história, não é que mordo a mão estendida para mim, a mão desse desconhecido, e sim que a beijo. A mão, à luz das inúmeras velas, parece transparente. Posso mordê-la? Mordendo-a, será outro o meu destino? Inclino o rosto. Beijo-a. Em outro ponto, em outro tempo, eu estou narrando este meu gesto. Em outro ponto, em outro tempo.
Junto ao velho casal há quatro ou cinco jovens, igualmente de luto. Minha mãe, segurando-me sempre pela mão, esgueira-se entre eles e o casal, esgueira-se e recebe condolências. Parece alegre. Logo restam apenas o casal e os jovens, todos com aspecto indeciso. Um pouco à margem, eu e ela. Também os jovens se despedem do casal e afastam-se. Nenhum se volta para minha mãe, todos afetam não vê-la. Um carro se aproxima. A mulher, agora sem chorar, toca de leve no casaco que lembra um cão empoeirado e que minha mãe conserva sobre os ombros; lança novamente em direção a mim aquele olhar quase imperceptível e nem por isto menos analítico; entra com esforço no automóvel. Também o homem se volta para minha mãe e vai falar-lhe; de dentro do automóvel, a voz autoritária da esposa intima-o a apressar-se. Levanto minha mão, sorrio e despeço-me dele com um aceno. O automóvel parte.
O sol apareceu. Minha mãe despe o casaco; assusta-me a frieza que acabam de assumir seus olhos, pouco antes compungidos, súplices e amáveis. É a primeira vez que a vejo à luz crua do dia e o que mais me surpreende é a pele do seu rosto: alva, transparente e como friável, dando a impressão de desfazer-se. Não me parece impossível que, para empoar-se, tenha apenas de passar no rosto uma esponja ou uma lixa, empoando-se com a própria pele esfarelada. Sua pele então desfeita em pó sob o atrito da esponja, da lixa. É a primeira vez também que ela me vê ao sol e por isto talvez me observe com desgosto e cólera tão fundos, a expressão com que se olha para uma ferramenta com que tentamos, em vão, afrouxar um parafuso, arrancar um prego ou arrombar uma porta. Mas o parafuso, sem que ela saiba, já está solto, o prego arrancado, a porta arrombada.

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