UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O22]

Sem a dentadura, jogada em alguma gaveta da cômoda, em meio a bulas não lidas, receitas, conta-gotas e frascos de remédio, impossível reconhecer, no meu avô, um dignitário da Justiça. Antes, é a senectude, assoladora, rápida — como um mecanismo que se desregula e passa a trabalhar acelerado. Dia por dia acompanho a sua queda. Queda? Uma demolição. Todas as noites, senta-se a escrivaninha e fala com a voz da Sabedoria um velho muito mais velho que o da véspera. Até restar, de tudo, isto: o sangue (pouco, o de um pássaro) quase imóvel nas veias, as mãos transparentes, os olhos que não mais refletern claridade e imagens, um rosto murcho — neutro — e esses beiços afundando pela boca. Um dos jovens que a saída da igreja ignoram minha mãe - agora já homem feito e sem luto — põe uma vela acesa nos dedos do ancião. Todos se curvam um pouco mais sobre a cama. O fim do ciclo, do trânsito cumprido na cegueira. Mais feliz, nessa instância, o meu avô, que tantos outros a quem julga na vida: seu julgamento, se há, independe de mãos tão coerentes e cautas quanto as suas. Nenhum fichário. Já é alguma vantagem. Sufoca-me um perfume intenso e cáustico. Minha mãe, varando as barreiras do banimento que lhe é imposto, pisa novarnente, sob a proteção da morte, os ladrilhos familiares. Ouço, simultaneamente, o estertor final do agonizante e a voz impassível da minha avó: “Mesmo hoje, você é pouco desejada aqui. Pode retirar-se.” O perfume se esvai. Setenta passos entre o leito mortuário e o escritório do avô. As luzes apagadas e os vagos reflexos nos vidros das estantes. Sento-me na cadeira sem dono, acendo o abajur de metal. Quase nada vejo além das minhas mãos e dos poucos objetos que restam sobre a mesa: pastas, pesos de vidro, estampilhas, a viseira inútil. Alguma coisa agora está completa. Não testemunho a agonia de Inácio Gabriel. Vejo-o no hospital, já morto, trajando a mesma roupa de tecido leve que veste em nosso último encontro, os pés descalços, um traço de aflição nas pálpebras; as horas que precedem a sua morte, porém, não vejo. Vejo a agonia do avô e com isso o vazio é preenchido. Sim, bem sei, nao são idênticas as duas mortes. Tem importância isto? Inácio poupa-me, não me faz saber que está morrendo, porém eu saldo o tributo que me cabe. Em sua intenção vejo um homem morrer. Fico à espreita: há uma presença estranha, arfando (mas em silêncio) no escritório. Um ritmo. Não, não uma presença: um oco, um orifício por onde o mundo se esvazia. A ausência do avô? Erguem-se, em algum ponto da casa, vozes abafadas. Arrastar de móveis, passos velozes na escada, tomba uma cadeira. Um ritmo. Com dedos inseguros, ponho a viseira na testa. Amplia-se, com isto, meu campo de visão, vejo os dísticos dourados das lombadas luzindo nas estantes e Olavo Hayano na poltrona de couro, bracos cruzados, os cotovelos nos joelhos grossos, os pés firmes no chão. Olha-me, fixo, com o seu olhar remoto e inquietante. Eu devo perguntar, em tom de suspeita e com uma sombra de cólera, o que faz no escritório. Não falo. Hayano, contudo, como se a pergunta fosse proferida (e assim toda a cena flui segundo está escrito que se cumpre) esclarece: - Estou aqui por causa do silêncio. Há um rumor que me aflige noite e dia. Tento identificá-lo. Um zumbido constante, não exatamente igual ao canto das cigarras, nem ao trilar dos grilos, nem ainda ao ruído de uma serra. Uma fusão de todos esses sons e de outros é o que ouço a toda e qualquer hora. Quando desperto, ouço-o. Penetrante, contínuo. Ouço-o até que adormeço e pelo sono adentro. Talvez por isso haja tantos mortos nos meus sonhos. Mortos coléricos. Mortos coléricos?... Repete a maioria das frases, construindo-as de maneira diferente; quase não move, enquanto fala, braços nem cabeça, a corpulência talvez retarde ou trave os seus gestos. Levanta-se. A voz sem modulações, ligeiramente nasal e um pouco estúpida, exalta-se. Está perto da mesa, a claridade evidencia a cor terrosa do seu rosto. Mortos coléricos? - Apesar do zumbido, posso distinguir muito bem os outros sons, os verdadeiros sons e apreciá-los. Por exemplo: gosto muito de ouvir a sua voz. O olhar é fixo e desconfiado. Todos os seus traços - e não apenas o terno, um pouco usado, um pouco justo - parecem tomados de empréstimo. - Na verdade, há ainda em sua voz alguma dissonância. Um tilintar infantil. Isto, sua voz talvez tenha alguma coisa de infantil. Ao mesmo tempo, é uma voz de mulher, com um timbre próprio. Nenhuma aspereza. Através do zumbido, posso muito bem perceber isto. Ligar-me a Olavo Hayano é como atravessar um passo, com lodo até a boca, para chegar — talvez — ao outro lado. Diz a minha história: serei encaminhada de modo à encontrá-lo. A função dele é cercar-me, romper-me, demolir em mim o que está construído, tentar impor-me o seu mundo, o seu modo. Um combate prolongado. Ao mesmo tempo, não está previsto que alguém, seja quem for, obrigue-me ou induza a travessia. Tenho de ir por mim, com o ar de quem não saiba que a catástrofe é certa e como se movessem-me esperanças. Eu, um cofre ataviado e a certeza no fundo — uma ampola de veneno. Eu, amada e amante, aos olhos dos demais e aos meus próprios olhos: um cofre esmaltado com motivos florais, radioso. Mas eu, sendo o cofre, sei, sei sem clareza, sim, sem clareza, mas sei, o que trago sob as chaves — a ampola, o veneno. Vai, cega, atavia-te e entra nesse jogo não muito diverso do que destrói tua mãe. Ama este homem e seu vácuo, solda teus pés e mãos nos dele. Depois, seja a luta para te arrancares a esse jugo, só através disso podes chegar a ser. Pois se não há saída para a fazedora de chapéus, há para ti. Mais: toda saída válida, em teu labirinto, há de passar por este crivo. Olavo Hayano é algo a cumprir. Um rito. Então, sem olhos, começo a liberar em mim o amor ou seus sinais por um homem a quem não amo. Tiro a pala da testa, jogo-a outra vez sobre a mesa. Perder tempo é inútil. Digo, adiantando-me a Hayano e apertando o ritmo da cena: - Sou muito jovem ainda. Estou estudando. - Já sabe mais do que a maioria. Basta olhar para você. Depois, não é preciso vir a saber mais do que sabe. A sabedoria é dolorosa. E então? O vazio, o vazio. Um sorvo. Apago a luz do abajur e no mesmo instante, com uma rapidez que contradiz todos os seus gestos, ele acende-o. Vejo que está pálido, verdáceo. O vazio. Quando ele entra com a mãe e senta-se na sala, eu criança, nessa manhã de chuva, o vazio que o cerca me repele, afasta-me. Quando me confessa o início de surdez, o zumbido, é o contrário: atrai-me, e eu vou indo. Ele ajuda-me com a sua voz impessoal: - Queria fazê-la feliz. O riso vem-me à boca, um vômito. Eu engulo-o. O diálogo torna a aparência livre e ao mesmo tempo mecânica, fatal, de uma partida de damas. A repetiçâo de outras partidas velhas e nem por isto menos decisiva: - Nada tenho, você sabe. Meus pais... - Não me interessam. Só você me interessa. — Curva-se sobre a mesa, fita-me de perto e, por um instante, seu olhar sonda os meus, vacilando. Baixo os olhos. — Quero que seja minha mulher. Eu, sempre de pálpebras descidas, fico em silêncio. Não respondo. Não devo responder. Minha mão esquerda repousa sob a lâmpada, solta, para que Olavo Hayano se encoraje a tocá-la. Ele toma-a entre as suas, beija-a. Minha expressão é a de quem se compromete a refletir sobre o que houve e também a de quem pesa, perplexo, as próprias incertezas. Meu corpete, negro, junto do bule de prata, absorvendo um pouco do seu brilho fosco, a prata absorvendo seu negror. A meia de seda, quase invisível, sobre meus sapatos. Abel sobre mim. Dentro de mim os claros e os escuros da sala, Abel em mim, dentro de mim seu cabeço, seu punho, seu braço, dentro de mim as gargantas dos cantores, suas vozes longínquas, eis aiona!, Abel em mim, dentro de mim, alavanca e corda, partindo-me e atando-me. Afasto ainda mais as pernas, movimento a bacia (vem, vinde aos porões fechados) e sinto-o, firme e severo, sinto-o até onde o posso sentir. As mariposas batem nas dilatadas paredes do seu báculo. São vermelhas, são verdes. Minhas vulvas lambem as suas uvas. Extensas e fúteis horas do velório. Nas ruas, na cidade, talvez a noite seja um ser vivo, móvel e crescente, gerando outras noites. Aqui ela se decompõe. Envelhecem os pastores de faiança, seus instrumentos de música apodrecem. Respiro um ar morto, pesado de fumo. Olho o velho. A testa porejada de suor, a dentadura mal posta, os maxilares amarrados com um lenço. Desfaço o nó do lenço, observo a boca descerrar-se. Alguém abre as cortinas franjadas da sala, abre uma janela e exclama: “Linda noite.” A espaços, na Santa Casa, alça-se o lamento de um doente. Vozes a minha espádua: “Grande homem.” Cerro os punhos. Morto, servirá a Justiça menos ou mais do que vivo? Passos a minha esquerda, leve rumor de patas sobre o tapete onde a jovem se diverte no balanço de cordas floreadas: o estranho, sem que lhe dêem atenção, transita entre nós, com o aspecto soturno de um cão velho. Vestida, sem tirar os calçados, apago a luz do quarto e jogo-me na cama. Já viste a morte, Inês? Em que parte do mundo, hoje, derramas sobre as coisas o teu verbo indulgente? Contemplo a morte de cara e esta prova me alegra. Não me proteges. Estás ausente quando a velhice destrói o meu avô no seu compasso célere. Sem tua proteção, assola-me a visão da morte, a morte expõe-se, clara, ante meus olhos, o avô está morto, morto e bem morto, o queixo abrindo-se e a dentadura atravessada entre as gengivas secas. Não estás presente para estender um véu entre mim e a destruição da carne aqui tão clararnente demonstrada. Adeus, Inês. Passos no quarto, passos de caprino, o estranho. O Hernidom? Olhamo-nos, ele de pé, eu deitada, seu olhar nada significa. Por que está aqui? Serei, como ele, um ser abissal? Ambos em silêncio. Nosso olhar: dois buracos, um em frente ao outro. Um espelho na frente de outro espelho. Deixo-o, ando outra vez pela casa. Os cachepôs vazios ladeando o relógio. Minha avó encerrada no seu quarto. Várias janelas abertas e as pessoas imóveis, sem falar, os rostos cada vez mais lívidos e escaveirados. Meus passos ressoam, ressoam. O piano com a sua toalha de brocado. A tenderna, os primeiros barulhos de mais esse dia, alguns homens dormindo nas cadeiras. As salas lembra os vagões de um trem noturno. Volto para o meu quarto. Não mais vejo o estranho. Emudeceram os cantores. Vai e vem o pêndulo, o vagaroso pêndulo. Repousamos. Minha perna esquerda, estendida, entre os joelhos de Abel; flexionada a outra. Adiar ao máximo o final, mantê-lo próximo, não deixar que nos tome - enquanto for possível. Ele acaricia-me a coxa soerguida; com os punhos fechados, bato lentamente no seu dorso. Ecoam, no silêncio, nossos suspiros, meus gemidos e as surdas palavras que ele me sopra. Mais escura a sala e agora urn clarão trêmulo. Longa e decrescente sucessão de trovões, nascida sobre nós, entre nuvens que não vejo, desce em direção a todos os pontos do horizonte. Uma cúpula. Bichos cruzam-se em nós, inquietos, gamos com leões, ovelhas com cães. Afastando-se um pouco, Abel desliza uma palma entre rneu ventre e o dele, afaga-me o púbis. Puxo-o para mim, com força, em tonro do seu eixo cerro meus anéis, duplamente — ele é dois em mim. Sua língua penetra-me o ouvido esquerdo, parece derramar-se nos meus corpos, sinto o bojo dos meus corpos agitado por línguas cálidas e ásperas, pelo sopro ardente de setenta bocas. Não sei o que fazer com as minhas próprias bocas e ponho-me a gritar. Línguas para fora, lambo o ar. Ignoro se os meus gemidos marcam o ritmo com que ele bate na entrada do meu útero ou se ele faz dos meus gritos o seu ritmo. São quatro horas e cinqüenta e três minutos.

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