UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
|
Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
|
|
Imprimir tudo Voltar
Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O7]
Eis aiona, eisaiona. Assim como um tecido poroso absorve a umidade, vai o meu corpo bebendo, permeável, os desenhos do tapete. Projetam-se, em minha carne e ossos, ângulos brancos, barras, franjas fulvas, ramos, gamos rubros, coelho, flores, pássaros: folhas de cor imprecisa. Um bosque abstrato, onde as coisas surgem, crescem, mas não vivem: não bramam os gamos, as flores não rescendem.
No fim do século, o naturalista Wilhelm Bolsche publica um livro sobre os animais. Nele se lê que as estrelas-do-mar podem partir-se em duas; e que, com isto, todos os seus órgãos se dividem. A terrível ferida não tarda a cicatrizar. Com o tempo, cada metade do Asteróide cresce e toma outra vez a forma de estrela. Então perguntam, Bolsche e seus contemporâneos até quando a estrela-do-mar pensa como uma unidade e a partir de que momento adquire a noção, rudimentar, de sua dupla existência. Pergunta inquietante e ociosa, que a poucos interessa e a que não se pode responder, ainda que se viva experiência idêntica.
O pequeno cálice, o som em meu umbigo, o som, o cálice vibrante continua a soar por muitos dias. Quando, afinal as vibrações esmaecem, há uma presença em mim, uma presença. Algo semelhante a um besouro, não, a uma aranha de movimentos lentos. Logo, não é mais uma aranha e sim um pássaro de asas curtas, sem bico, os pés cortados, um pássaro cinzento, mais tarde um peixe quadrúpede, aflito e inquieto, nadando com esforço em meu útero verde. Abro a janela e os olhos do peixe se iluminam, choro e o peixe entristece, tenho sono?, adormece, corro e suas pernas se agitam, assusto-me e ele se encolhe, alegro-me e as suas escamas resplandecem. Sem que eu saiba, há em mim uma cisão, de mim mesma estou nascendo, invado-me. Já não é um peixe, mas um cão, um cão ornado de plumas, com grandes barbatanas, que me ocupa. Tem pés e mãos. Às vezes estende a perna, com o pé fura-me o ventre, o baço, eu me contorço de dor. Ergue o punho e me fere o coração, atravessa-o: surgem manchas roxas no meu corpo. Lambe-me a garganta e eu vomito. Ligo tudo isto, aturdida, à ave que desce sobre meu ventre e, muitas vezes, muitas, sondo as nuvens. Mas a ave não volta, nunca mais, nunca, não reaparece.
Olhando-se o tapete, não se vê entre as flores e pássaros o crocodilo. Este, dissimulado na profusão de motivos, mais facilmente pode ser descoberto no reverso, no lado sempre oculto da trama, onde se cortam os fios e dão-se os nós. Liberto dos hábeis artifícios que o escondem, fazendo-o a um só tempo presente e invisível, o crocodilo (absorvido como os motivos evidentes do tapete) passeia no tronco estendido de Abel. O gamo rubro, de pé entre os nossos corpos abraçados,
olha o mostrador do relógio como se olhasse para o Sol,
cauda e patas traseiras no flanco de Abel, a cabeça e o peito no meu flanco. O crocodilo, escurecendo o torso de Abel, tem a boca à altura do seu sexo e pressiona-me a coxa. Morde o bico do meu peito o coelho, morde de leve, como se mordesse um talo tenro de capim.
Sei o que são outros homens, deito-me por cólera com eles, abro as coxas de raiva, dão-me prazer e nada arrancam de mim, dão-me prazer, o prazer que se tem quando se mata um cão raivoso a tiros, um gozo mudo e dilacerador, mas a ti eu quero dar-me, Abel, de um modo novo e único, dar-me com alegria, hei de franquear à sua intromissão minhas identidades, meus sexos, meus corpos, hei de receber-te nos âmagos de mim e de dois modos te amar, com duplo desejo, ânsia dupla, duplo assentimento, e não serás um intruso, um inimigo - e sim o hóspede, o invocado, o aceito, eu te receberei com todas as portas do meu corpo abertas, eu, Asteróide cindida e unificada, eu, eu, dual, eu, una. Morde me. Basta me.
© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.
Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333
|