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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O18]
Três dias vacilo entre ficar e fugir. No terceiro, estou junto ao piano, sempre coberto com a sua toalha de brocado, estou de pé ao lado do piano, no exato ponto em que meu pai, crédulo, enleia sua aluna, sem o saber, num destino adverso. O relógio de mesa, ladeado por dois viçosos tinhorões em cachepôs de louça, marca onze horas e dez. Estão abertas todas as janelas, as cortinas franjadas recolhidas e o sol cai sobre o tapete, onde uma jovem de vestido leve diverte-se, entre árvores, num balouço de cordas floreadas. Inês, toda de branco, sentada numa cadeira baixa e não menos feliz que a moça do tapete, faz um trabalho de tricô. Lendo agitadamente um jornal, minha avó, ereta e um pouco voltada para a sua direita, ocupa o sofá - de palhinha, com medalhões no espaldar. Seus óculos de aros dourados cintilam. Do centro do sofá e sentada à amazona, sempre com o aspecto de quem se planta no alto, na sela, reina sobre os consolos e dunquerques com pastores de faiança tocando instrumentos campestres ou falando ao ouvido de pastoras, sobre as bandejas de prata, os jarros coloridos de porcelana e, principalmente, sobre as doze cadeiras - umas de braco, outras simples -, todas vazias e voltadas para ela. Vejo-a refletida em um dos grandes espelhos com moldura dourada que pendem da parede. A repetição do seu vulto torna-a ainda mais dominadora.
Apraz-me, nessas idades, ouvir a minha voz. É ainda uma voz de criança de dois anos, rouca, nasal e estridente, mas eu atiro-a às paredes, sem muitas vezes ouvir o que digo, atenta apenas ao seu volume e inflexões. Do mesmo modo que, durante o meu longo período de mudez, crio palavras não pronunciadas e chego a pensamentos que não me atrevo a externar, lança a minha boca, nesta fase segunda, idéias, narrativas e nomes que ninguém conhece, que nem eu conheço, que não conheço melhor ouvindo-os de minha própria boca e que decerto assustam ainda mais os que me escutam por serem proferidos numa voz insegura de criança, traduzindo uma experiência que sobrepassa a deles e não é justificada pela minha idade ou aparência.
O relógio de mesa marca onze horas e quatorze minutos. As agulhas de Inês enlaçam os fios de lã. Minha avó, duplicada no espelho, lê as notícias de falecimentos. O céu torna-se escuro e ameaçador. Duas andorinhas atravessam juntas o espaço, da direita para a esquerda; em sentido oposto, bate asas um pombo solitário. Ressoa um trovão, surdo e prolongado. Vem-me, de súbito, o impulso de falar.
Então, falo. Inês, interrompendo o tricô, olha-me com espanto. Minha avó, a palidez realçada pela pintura supérflua, levanta-se e o jornal cai da sua mão; sem tirar os óculos, faz-me, com voz incerta, uma pergunta que não compreendo. Continuo a falar, exultante com o som da minha voz, novo trovão repercute, ela repete a pergunta três ou quatro vezes e por fim traduz: "Onde aprendeu a falar alemão?" Mais: "Que monstro é esse de que fala e que está na minha frente? Aqui não há ninguém".
Ressoa ainda na sala a última sílaba das suas palavras, quando a chuva tomba: ouço a campainha e o portão se abre. Através das janelas, vejo correrem no jardim, curvados, uma mulher baixa, espessa, com cerca de cinqüenta anos e um cadete ainda adolescente que deve ser seu filho. Sempre com os olhos fixos nos meus, minha avó dirige-se a Inês: "Veja quem vem". Inês, pressurosa, apanha o jornal a seus pés e corre para abrir a porta. A mulher e o filho, com respingos de chuva na roupa e nos cabelos, entram. Ele descobre a cabeça, Inês fecha as janelas. Minha avó, com um gesto, convida a visitante a sentar-se a seu lado, no sofá. O rapaz, após um instante de hesitação, atravessa a sala, afasta ligeiramente uma cadeira e senta-se de frente para elas. Vejo-o de costas, o dorso é um tanto pesado para a sua idade. Por cima do ombro dele, minha avó lança-me um olhar inquieto, não, um olhar aterrado e talvez inquiridor. Saio de junto do piano e me sento no tapete, aos pés do jovem: "Como é o seu nome?" Indago como se procurasse alguém cujos traços correspondessem aos seus ou como se apenas precisasse dissipar as últimas dúvidas de uma evidência qualquer. Ele assusta-se com a minha voz acidulada e recua um pouco na cadeira, antes de responder: "Olavo". "De quê?" "Olavo Haiano".
Duas imagens planas, unidas no estereoscópio, adquirem relevo. Vejo Olavo Haiano, com o meu duplo olhar, como ninguém o vê, vejo-o em relevo, o quepe sobre os joelhos, figura num estereoscópio. Abranjo-o na sua forma carnal e no consternador vazio que se esconde na carne perecível. Olavo Haiano? Não, este não é o seu nome. Assim o chamam, assim ele assina, mas o nome cai de sua boca tal um manto que ilusoriamente revestisse um corpo, um manto erguido entre o observador e o homem nu, com um muro de vidro entre o manto e o homem, sendo portanto vedado ao homem chegar a vesti-lo e bastando ao observador sair do seu lugar - um pouco à direita, um pouco à esquerda - para constatar que o homem está despido, que o manto não o veste e nem o pode vestir. "Não é". "Não é o quê?" "Não é Olavo Haiano". A chuva cai em cordas, ruidosa e pesada. Inês está a meu lado, a mão erguida e indicando o jovem, decerto exaltando-o. Eu me levanto, lenta, levantome e recuo um passo. Olho-o do meu centro, do fundo de mim mesma, com impaciência e raiva, sentindo que esta raiva, esta impaciêcia, batem nos seus olhos e voltam redobradas, olho-o como se entre nós houvesse um rio caudaloso, um fosso - e nos fosse necessário muito caminhar, dar muitas voltas, antes de verdadeiramente defrontar-nos. Mas ele ainda pergunta, mãos crispadas no quepe: "E você? Quem é? Como se chama?" Sua algidez envolve-me, penetra-me. Deixo-o e respondo da porta, sem voltar-me: "Não sei".
À noite, fico mais uma vez à espera da máquina, que gira para ninguém sobre o meu leito vazio, em outro ponto da cidade, no Martinelli. Olavo Haiano, postado em minha mente, tem o ar de um intruso sobrenatural, reunindo em si os sentidos de isca e de advertência. Por trás dele se esconde o meu destino, do mesmo modo que ele próprio se oculta sob a opacidade do seu nome. Há um sim e um não, uma opção entranhada no ar que o envolve.
Quando desperto, estão separadas e deitadas no leito, lado a lado, as duas que sou. Vejo-me, sempre, no espelho. Vejo-me agora fora de mim e os rostos que contemplo me surpreendem. Um deles é ainda um rosto de criança, mas o outro começa a entrar na sombra da adolescência. Olho-me duplamente, a noção que eu tenho da minha individualidade é una, sinto-me uma, mas ao mesmo tempo eu me sinto uma em cada uma que sou e nas duas simultaneamente. De modo que em nenhuma hipótese poderia dizer: "Ela me olha". Ou: "Respondo-lhe". É como se eu estivesse no espelho, mas sem saber em qual dos lados está o meu reflexo. Com as agravantes de que estes reflexos não são idênticos; nem agem como reflexos; e nenhuma lâmina os separa. A lamparina está acesa no seu copo vermelho e não há relógio no meu quarto. Nem sempre, daqui, ouço o relógio da sala, entre os cachepôs com tinhorões. Não sei que horas são. Digo: "Vou embora. Preciso da máquina". Estou sentada na cama, vestida numa camisa de lã e de pé ao lado da cama, nua. Estou abrigada e tenho frio. "Isto mesmo. Devo ir. Mas talvez seja tarde demais". "Que se danem as horas. Vou de qualquer modo". As vozes são diferentes, as duas abafadas, quase um sopro. "É perigoso andar tarde da noite nas ruas". Ergue-se em mim grande desprezo por mim. A resposta já não é proferida no mesmo tom de voz, e sim mais alto, e como que eriçada, sim, há na voz qualquer coisa de um javardo no ataque: "E isto aqui é seguro? Que quer dizer seguro?" Há um ruído, ou uma série de breves ruídos secos, trinta bastões de giz partindo-se dentro de mim ao mesmo tempo. Levanto a mão, afasto-a o mais que posso para trás: a bofetada me flagela à uma o rosto e o punho. Ainda falo?, respondo?, insulto? eu?, eu? O combate é longo e violento. Um duelo de morte. Quero ir-me, outra vez ir-me, tantas quantas forem necessárias, quero ficar pelo menos por uns dias, as vontades se opõem e a luta nada tem de infantil. Abrem-se dois olhos vulneráveis? Neles procuro enfiar as pontas dos meus dedos. Está próxima a parede? Golpeio-a com a cabeça que tenho entre as mãos. Se alcanço o travesseiro, utilizo-o para sufocar. Se posso, mordo. Se posso, estrangulo, dou com os cotovelos, bato com os joelhos nos queixos, nas costelas, no fígado - e exauro-me a cada golpe dado ou recebido. Em meio à luta, várias vezes trespassa-me um problema: destruindo a oponente, subsistirei? Vencê-la não será meu fim? A pergunta não modera a ferocidade do duelo. Passam na rua soldados a cavalo, as ferraduras batendo forte nas pedras - e eu em luta. A lamparina crepita, a chama intensifica-se, apaga-se, o quarto fica às escuras: eu em luta. Cães latem e silenciam, passa uma ambulância, há explosões longínquas. Eu luto. Pássaros começam a trilar sobre o telhado, eu luto, a débil claridade da manhã penetra pouco a pouco no quarto, delineando os móveis e as paredes, delineando a inimiga e eu luto, luto ainda. Afinal, rolo no assoalho, fico de costas, deitada, braços abertos, respirando rápido. Digo: "Eu gosto de Inês". Com outra boca: "Odeio Inês". Há uma pausa e eu proponho: "Quem quiser, fica; quem quiser, vai". Minha voz, em resposta, após breve silêncio: "Nada de separação. Para o que der e vier, seja uma vida só". "E o lólipo? Ele vem. Ele já veio". "Que venha. Veremos quem vence". Levanto-me, sento-me na cama, estou deitada no chão, nua. Com dificuldade, ponho-me de pé e ando: de costas para mim. O cantar dos pássaros é mais alegre e de alguma parte, longe, vem um rumor de garrafas. Alguém põe-se a gritar na Santa Casa. No meu coração, discordante a princípio e logo em uníssono bate o coração mais novo. Doze anos, seis meses e dois dias vivo nessa casa.