UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O15]

Muitos dias no leito, entre dormindo e desperta, em silêncio. Sem ânimo sequer de abrir os olhos, porém com um novo e passageiro sentido à espreita em algum ponto do meu ser (ou este sentido é o meu ser total que se aguçou?), percebo os lentos e solenes movimentos do mundo, a montagem da máquina. Outro nome poderia ter este imenso aparato que aos poucos se organiza no espaço? Continuo atenta aos ruídos habituais do apartamento, aos que vêm de outros pontos do edifício e aos que vêm da rua. Mas os passos sutis de minha mãe, o arranhar das portas gradeadas e não lubrificadas dos elevadores, as misturadoras de concreto e as serras mecânicas do prédio em construção, buzinas de automóveis, pregões, um amolador de tesouras, parecem-me disfarces, uma cortina de pequenos acontecimentos ilusórios, para ocultar o evento verdadeiro, o que me diz respeito e se relaciona com o meu destino - a formação da máquina. As grandes peças vão surgindo (quem sabe de onde vêm?) e ajustam-se, organizam-se, chapas oxidadas de um navio com a quilha voltada para mim. Toda a máquina se arma em função do ponto em que estou. Semelha um navio? Talvez evoque, de maneira ainda mais aproximada, uma esquadra numerosa, não ancorada no mar e sim no ar, dispostas as naves em formação cônica e de tal modo que eu seja o vértice do cone. O avançar do tempo é marcado pelas límpidas pancadas que se irradiam do Mosteiro de São Bento. Noite e dia, numa elaboração que parece interminável, forma-se a gigantesca máquina ou esquadra, forma-se, acrescenta-se e suas juntas rangem se o vento se levanta. Parece estar concluída, aprestada para a sua missão, que desconheço qual seja. Quando menos espero, uma unidade ou outra se desloca, as partes das quais se separam vão preenchendo o claro, enquanto as unidades desloca das reaparecem além ou voltam à sua origem ignota. São três ou quatro horas da manhã quando afinal se completa. Não se ouvem rumores no edifício ou na cidade. Apenas, com intervalos mais ou menos longos, o ranger de um bonde sobre os trilhos, talvez rodando vazio. Mesmo as mulheres que lavam pela madrugada o piso encardido dos cafés situados entre a praça da Sé e o prédio dos Correios decerto já seguiram para as suas casas no subúrbio. Os onze elevadores do prédio estão parados: dois no térreo, um no 8º andar, outro no 17º, ainda outro no último e os demais quem sabe onde. Alguns devem estar desarranjados, sempre há alguns precisando de consertos. O relógio de São Bento bate meia hora, três pancadas desiguais, que se repetem. Meia hora de que hora? Eu espero. Deitada de costas, estendo os braços ao longo do corpo, os dedos crispados no lençol, as pernas alongadas, unidas - e espero. A máquina, etérea mas real, seu arcabouço intangível invadido em parte pela estrutura concreta do Martinelli, a máquina, varada por morcegos e tão alta que as últimas peças engolfam-se nas nuvens negras, nas nuvens dessa noite sem estrelas, a máquina se move e pousa delicadamente em mim. Gira e zumbe, assemelha-se a um pião em movimento, gira, giro vagaroso, zumbe e quase inaudível é o rumor que produz. Não tenho dificuldades em compreender que a sua lenta formação é puramente simbólica, que nada a impediria de formar-se mais rapidamente e que mesmo o fenômeno da formação da máquina seria dispensável, uma vez que, na verdade, sua existência é anterior à consciência que eu tenho de sua presença e de sua própria fabricação. A máquina, suavemente, gira sobre mim, a ponteira pousada no meu ventre. Seu giro capta os fastos do mundo, a ressonância dos fastos do mundo, mói em suas rodas as coisas e os eventos, verte-os em mim. Nas trevas, no silêncio, sem ninguém que me ajude a suportar esse momento em que, sob o vértice da máquina, suporto o seu peso, não, bem entendido, um peso físico, mas um peso que nasce da sua grandeza e da sua austeridade, processa-se em mim uma mudança de estágio, uma sagração. Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o ponto ou o ser para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem conhece, o que julga conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem sequer lhe ocorre que exista. Alguns retardatários - vindos de onde? - detêm-se, conversando em voz alta, à altura da praça Antônio Prado, um toca clarinete, executa uma valsa, a execução tem qualquer coisa de um arrastado monólogo de bêbado. Ainda ouço, longe, o clarinete, quando surge um vozerio, gritos confusos, inumeráveis, extraviados em alguma distante transversal. Quem clama a esta hora da noite? São vozes de crianças, um bando de crianças sublevadas cruza a cidade, despertando-a. Penso juntar-me a elas, protestar contra meus pais, contra este mundo de corredores mal iluminados e pórticos de mármore. Mas a ponteira da máquina, esta máquina semelhante a uma esquadra completa, de luzes apagadas, suspensa no ar e manobrando lenta, em círculo, na mesma direção, crava-me no ponto em que estou. As bocas infantis não se aproximam nem se distanciam. Vêm mesclar-se à celeuma das crianças algumas vozes de homem. Distingo, claramente e de súbito, palavras soltas, tão próximas como se fossem ditas no meu quarto. Então, percebo-me inundada, povoada de vozes, vozes no meu sangue, nas costelas, nos maxilares, nos cabelos, nos olhos, nas unhas, muitas vozes. Gritos e palavras nadando ou revoando em mim, eu invadida por uma multidão de vozes, eu desfeita em vozes. Como se eu fosse uma escultura de areia fina e cada grão uma voz, uma palavra e suas danações. Adverte a música de Orff, pela voz dos anciãos, que nada perdura indefinidamente. Como se importasse o tempo nesta hora. Os hipopótamos da eternidade bafejam-me com seu hálito ardente. Onde os meus seios? Onde o meu colo? Braço. Dorso? Torso... Estas palavras - e outras escorregam, começam a descolar-se das partes do meu corpo por elas nomeadas. Já não penso no meu braço como sendo braço, mas como pés ou boca; a boca chama-se umbigo ou calcanhar; o sexo chama-se olhos, depois peito, depois ombro. Entre a minha mente e o meu corpo desmembrado flutua um pequeno léxico arbitrário. Surpreende-me que essas designações não tenham perdido por completo as ligações com as partes do corpo a que por norma estão associadas: que a palavra boca, significando braço, surpreenda-me, guardando um halo do que ordinariamente exprime, de modo que não sei, ao pensar no braço como boca, que câmbios houve ao certo, que transmigrações, se foi tão-só o nome boca que se deslocou para o meu braço com o seu feixe de sugestões (vozes, paladar, gengivas), ou se realmente a boca, a boca, não apenas seu nome, violou todas as limitações e instalou-se, ávida, falante, no espaço ocupado por meus braços. Se eu não abraço com a minha boca, ou então com os meus pés, o tronco de Abel. Ó, meu amor (ouvir-me-á, se, por exemplo, são as minhas têmporas que falam?), morde-me os dentes, as unhas, as pupilas, morde-me o ombro, as coxas, prende em cada lugar seu nome verdadeiro. Os nomes, porém, continuam a deslocar-se. Suas mãos deslizam nos meus cílios, nas asas do meu ânus, no cotovelo, na coluna espinal? Percorre sua boca, beijando-me, o jarrete, o céu da boca, o queixo, os bicos dos joelhos, os tornozelos, as plantas dos quadris? Sopram sobre nós os hipopótamos. Ritmicamente, Abel suga-me as pontas da cintura, suas mãos afagam-me a cintura, ele suga-me as falanges, suga-me os punhos, sua respiração me queima, eu cerro os flancos, eu abro as sobrancelhas, penetra-me a nuca sua língua macia, eu dou um grito surdo, um grito: "Vem". Tudo escurece. Meus pais discutem. As ofensas que proferem são cada vez mais duras. Ele leva a corneta à boca e arranca do esôfago, com esforço, expressões ultrajantes. Sem altear a voz, sem demudar o rosto, sem empalidecer, ela devolve os agravos recebidos, enquanto tenta abotoar um vestido negro, que se adapta mal ao seu corpo. As costuras estalam. Odor de cânfora, mesclado ao perfume em que ela parece despender metade do dinheiro obtido na confecção dos chapéus. Quando olha para o homem é como se não o visse, ou como se o visse a uma grande distância, um olhar frio e aniquilador. Veste-me também de negro e penteia meus cabelos, sem interromper a sua insultuosa salmodia.

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