UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O20]

Que me atormentam? são estas crianças? as duas? Se: devo perguntar a minha mãe. Descerei os tisnados degraus do Martinelli, cada vez mais gastos, descerei com vagar esses degraus e no meio da escada voltarei. Para fazer-lhe a pergunta. Ficarei ante a porta, hesitante, ficarei ante a porta, sem ousar premir a campainha, ouvirei risos na sala e - de súbito — a voz, a voz de um deles, urna voz infantil e depravada corno a de alguém no último grau da vileza: “Aquela é o Hernidom?” Aviltante e ofensivo perceber, na voz, semelhanças com a minha. Dou meia-volta, afasto-me, desisto de chegar a um esclarecimento. Dias e dias, intrigada, repetindo esta frase inexplicável: “Aquela é o Hernidom?” Indagando sobre quem ou o que será o Hernidom. Hernidom, afinal, será o mesmo que Ira? Ele beija meu sexo e sustenta-me os peitos, o crocodilo passeia junto ao bule de prata tombado no tapete, ramos e flores nascidos do tapete quase ocultam as paredes e enredam-se nos lustres, se enredam, pendem para fora através da janela, as leoas passam pelos nossos corpos, as leoas, o coelho, cabras de pêlo branco e cadelas de cabeça humana passam pelos nossos corpos, andam na sala, sobem nas poltronas. Ele roça com os dedos as pontas dos meus peitos, sua postura é a de um homem a quem apontam uma arma, os braços para o alto, nos meus peitos florescern margaridas brilhantes, rebentam violetas dentro do meu ventre e o crocodilo - roxo, vermelho e verde — o crocodilo desliza junto ao bule de prata. Inácio Gabriel, tens quantos anos, Inácio? Para dezesseis, sério demais; muito franzino para vinte. Um adolescente de ossatura frágil, um efêmero anunciador, eis tudo. Praça Antônio Prado, frio entardecer em fins de maio. Cinzento o céu, úmidas as ruas e as calçadas. Ressoam no silêncio meus passos infantis, eu seguindo pela mão do meu pai, sobre essas mesmas pedras, em desoladas tardes de domingo. Não chove mais e os altos de alguns edifícios fulgem ensolarados contra o céu de chumbo, sem que se veja, do chão, de onde vem o sol. Assusta, nos olhos de Inácio a ausência de ambição e de brilho. Nele, tudo faz lembrar uma aquarela pálida, urna paisagem entrevista sob a névoa: as sobrancelhas leves, o sorriso discreto, a voz velada e mesmo o jeito de andar: os passos inaudíveis, cautos. Veio há menos de um ano do Recife e o terno bem passado, mas de qualidade inferior, abriga-o rnal contra o frio. Se, ao menos, pusesse urn suéter! O grosso livro negro — trabalha no 11.° Ofício de Notas — parece muito pesado para os seus braços. Veículos salpicados de chuva e pessoas apressadas passarn, muitas de olhar ansioso. - Ainda não tinha visto em São Paulo uma tarde como esta. Tudo tão leve! Preste atenção ao cheiro da cidade. Diferente, quando o ar está lavado. - Como é seu nome? - Inácio Gabriel. Olho-o de face, no fundo dos olhos, olho-o, de face, leio em alguma parte dos seus olhos as ameaças que o cercam e vejo-o em sua verdade, cândido, desamparado, atento às variações dos odores, com seu andar inaudível e as mãos inquietas, vejo-o chegando de tão longe através de muitas transversais, becos, desvios, para encontrar-me nesta pequena praça brutal, sem silêncio e sem árvores, desnorteado no mundo, com a morte sorrindo de maneira solerte dentro dos seus olhos, vejo-o destruído e compreendo que este encontro casual é o prenúncio de outros, e algo nunca pressentido se desata em mim e eu olho o fugitivo sol nas paredes distantes, certa de que só nós o vemos — tomo a sua mão e decido que algo devo dar-lhe, que algo lhe darei com urgência, pois ele decerto não está nas ruas para receber, não tem mãos de agarrar, transita em silêncio entre clamores e gritos de ambição, é raro e será reduzido a pó, de nada o salvarei (quem pode salvar?), mas durante alguns passos ele terá companhia. As duas, eu e eu, as duas, contemplando as coisas e a própria metamorfose. Inês, conquanto feita para transitar entre as pessoas sem ser pressentida, despende o seu fascínio. Não escolhe motivos para rir com prazer, embora com uma ponta de melancolia (os incisivos superiores sempre aparecem entre os lábios curtos) e sua ternura desmedida, expressa nos sufixos do grau diminutivo, abrange as plantas, móveis, seres inexistentes, parte do seu corpo, seus pertences: “Onde está minha blusinha?” “Tome um docinho”. “Guardei no meu bolsim”. “Machucou seu pezinho?” “Estou com os olhinhos tão cansados!” “Que caminha quente”. “Que saudade, meu bem, do Passarinho Voou!” Sopra-me adulações e hipocorísticos: “Luisinha, você foi feita para sedas. Olhe os seus dedinhos como são macios. Que pele, meu Deuso. Você é que tem sorte, Vanju”. Nutre a idéia, já vigorosa em mim, de que seria um desastre perder meus privilégios, eu, com estes dedos macios, com esta pele tenra, feita para os veludos, os damascos. Eis-me então servil ante bedéis e mestras, eis-me conduzindo buquês de fanados malmequeres, passados numa folha de jornal, o braço erguido, as flores mais altas que a minha cabeça. “Prestou atenção ao seu avô? Fala a você com um carinho! Ele trabalha com as leis. É um homem importante, Naná. Coração de pomba”. Concordo e logo me orgulho desse homem calvo, ponderado, elásticos nas mangas da camisa, viseira na testa, redigindo com zelo pareceres que são reflexos alterados de outros. Sentada nurna poltrona de couro, olho os títulos das encadernações nas estantes. Ouço o rascar da pena no papel. Meu avô se levanta para interrogar os seus fichários. Inês, entreabrindo a porta, dilata os olhos, sorrindo, em direção a ele e se retira em silêncio. Seus gestos acentuam a distinção, a minha, de estar ali, fazendo parte da sombra que rodeia o avô e a sua escrivaninha, enquanto grandes questões tornam a direção que ele sugere com a sua coerência. Erguemo-nos do solo. O gamo, sentado junto ao grande relógio de caixa, cujo pêndulo oscila devagar, nos olha. Rolamos no ar, entre as folhagens, os ramos, os bichos, rolamos no ar, abraçados com força, pousamos no tapete. Rumor de multidão, alguns gritos, um riso, um chamado. Serão as minhas vozes que ressoam em mim? Plantas e animais tornam aos nossos corpos. Minha avó e sua vida murada, uma rede de ciclos intercomunicáveis e restrita, de modo que seus atos e palavras tendem a repetir-se com variações quase imperceptíveis, ou imperceptíveis, acumulando-se — atos e palavras — uns sobre os outros, obsessivamente. Seu rosto muda sob a pintura, a linha da coluna encurva-se um pouco à medida que seu queixo, tentando uma compensação, alteia-se, as palavras são ditas no ritmo de sempre, mas algumas sílabas, em número crescente, perdem-se na língua, o rápido e perscrutador lance do olhar torna-se menos eficaz e os cabelos mais negros, dado que carrega nas tinturas à medida que progride o encanecimento. Quase não se altera, apesar de tudo, o repertório de censuras, ordens, refeições e passeios, esse ritual descabido e que não converge para um fim preciso. Palavras muitas vezes repetidas: “Como pôde você enganar-se desse modo? Um homem tão vivido e habituado com os inimigos da sociedade! Ela é irrecuperável. Foge entre as nossas mãos. De que lhe serviram os milhares de pareceres e a Revista dos Tribunais? Enfim...” Não elucida uma só vez o que esconde esse advérbio solto, enigmático, deixado em suspenso. Movo-me, com treze anos civis, entre crianças de nove, aprendendo na escola as mesmas coisas que elas. Não nos entendemos: sou indiferente aos seus brinquedos e atenta a numerosas coisas que ainda não percebem. Mais alta do que todas, mais velha (e simultaneamente mais nova), distingo-me também pela gordura e transito nos salões e pátio de recreio com uma funda consciência de segregação. Um monstro anacrônico. Trespassam-se em mim os meus dois nascimentos e as filhas desses nascimentos, dois corpos num, só um deles visível; o outro, espreitador, apenas se revela pela voz que se alterna com a do corpo visível, ou pela dentição extemporânea, ou, ainda, por manifestações menos evidentes. Ao sabor dessas alternâncias, meus períodos, irregulares, e às vezes lancinantes, sem que ninguém saiba, oscilam. Não é outro o ritmo da minha aprendizagern. Passam-se meses nos quais a dupla noção que possuo das coisas é como que regida pelo corpo mais novo e eu não consigo progredir. Sou suspensa, sou expulsa, sucedem-se as reprovações. As flores que ofereço são jogadas na cesta de papéis com o jornal que as envolve. Quantas vezes nos vemos, Inácio Gabriel? Dez? Doze? Talvez menos, talvez ainda menos. E essas poucas vezes parecem uma só vez, um só encontro realizado com interrupções. Um encontro pressuroso, como duas pessoas na estação, entre dois trens. Dão o sinal da partida, os condutores gritam, os retardatários vêm correndo e jogam a bagagem no estribo. Sabemos que algo essencial não será dito, que o mais importante, o que deve ser confessado antes de tudo só nos ocorrerá quando houvermos partido, cada um na sua direção. As palavras se atropelam, os gestos se atropelam e há silêncios, e os silêncios nos afligem, pois sabe cada um que ficarmos frente a frente é um privilégio fugaz, mas continuamos sem falar. E de repente vemos: estamos sós. Fizemos tudo? Dissemos tudo? Fugidias tardes de domingo, quase todas de neblina. Ano de pouco sol, o de 1951. Vibro de alegria, pela primeira vez conheço o gosto da alegria. Mas esta alegria gera um pássaro ainda preso e inquieto. Olho para Inácio Gabriel na obscuridade do cinema; com a atenção fixa na tela, ele não sabe que o observo; seu rosto plácido tem algo de um reflexo, nele se reflete um velho. De repente me vê, vê que o observo, o velho foge e sua juventude vem à tona. Galerias do Municipal, intervalo de um concerto; volto do toalete e vejo-o à distância, a mão no queixo; nada tem do adolescente que pouco antes joga aviões na platéia e nomeia sorrindo as mulheres esvoaçantes do forro, até a sua cor é diferente; aproximo-me e o rosto que se ergue para mim é o que eu amo. Nós na Confeitaria Vienense, comprando doces que comemos na Praça da República, olhando os patos no pequeno lago. “O que será de nós?” Ignoro que pela sua boca outra voz está falando e não posso entender este som de ondas quebrando-se em rochedos, distintamente ouvido no mesmo instante em que ele faz a pergunta. “Nós quem, Inácio? “Nós, que de um modo ou de outro não queremos oprimir os demais”. Tomo sua mão: está trêmula, ardente, ele tem febre e deve estar com frio. Leva-me ao ponto do bonde, espera que eu suba e acena para mim. Alegremente, apesar da febre. Desço e volto, para observá-lo sem que ele me veja. Vai pela calçada, entre os passantes, devagar, a mão esquerda no bolso, olhando as árvores. Visível o desenho das omoplatas sob o paletó claro. Tão frágil és, Gabriel, e quão pouco o meu amor te guarda! A Morte, pronta a lançar sobre ti a sua rede, segue-te sutil.

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