UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O11]

O seio da mulher, esfera alva e pejada, desfaz-se num sabor tépido. Penetra-me o espesso perfume que a envolve. Vejo-a pela primeira vez e ao mesmo tempo a reencontro. Ela não sabe que a vejo. Pálida, parece ainda mais pálida em seu esgarçado roupão de seda negra. Negra ou escarlate? Na penumbra do quarto, tudo é igualmente vago e nitido, familiar e estranho. Já não contemplo no meu corpo a criatura-em-mim, já não existem escamas, plumas ou asas temporárias; pés, tronco, mãos e rosto, inseridos nos meus, pertencem-me; tenho nos meus olhos os seus olhos, aos meus incorporados. Vejo sabendo e vejo sem saber, vejo tendo visto e vejo sem ter visto nunca: inauguro este dúplice olhar nunca fundido num só. Sugo, sôfrega, o peito da mulher, ela murmura. Em minhas mãos, vejo deslizarem (réstias?, pequenas salamandras fluidas?) enxames delicados de manchas para mim ainda indecifráveis. Mergulho outra vez na escuridão, na fuligem. Atravesso lentamente as noites, noites sem dias, montada num cavalo. O cavalo tem um chifre brilhante entre as orelhas e no casco esquerdo traseiro há um ferimento, ele marcha com três patas, soluçando, aos saltos. Nas intermináveis noites, passa de tempos em tempos uma estrela cadente e eu vejo à luz da zelação que o animal é verde. Passamos por cidades escuras, rios de lama negra, galgamos montes de trevas e descemos encostas ainda mais sombrias. Uma das cidades, situadas neste caminho que não sei se é reto ou sinuoso, cheira a frutas; todas as pessoas, fechadas nas casas, comem em silêncio, sem nada ver, safras de laranjas, de abacaxis, de melões; dentro das casas ou nos seus quintais há pessegueiros, pereiras, macieiras, árvores pesadas de frutos. Num dos vales invisíveis alguém martela um ferro, não seguidamente, mas a largos espaços e uma pancada é igual à outra. Acende-se na noite (em que noite?), extraviado, suspenso, sob esta neblina de quinze anos além, um anúncio luminoso, branco e vermelho, um escudo com estrelas, imenso, sobre grandes letras. Acende-se e apaga-se. Uma pulsação. Atravesso outra cidade - não tem perfil, não tem nome, nenhuma é visível, nenhuma tem nome -, todas as portas batem, portas e janelas, as distantes e as próximas, batem, já estou longe e ainda escuto-as, batem. Sobre mim, apenas o vestido, os anéis, as pulseiras, o colar e os brincos. Abel, os pés nus, toca nos meus, suas mãos e seu hálito desarmam-me. Em meu corpo invadido, que governo ainda? Crocodilo e coelho correm no meu sangue, correm no seu, passam dos seus ombros para mim, dos meus joelhos deslizam para os seus. Dentre os motivos geométricos, dentre as negras ramagens, dentre as franjas e os sossegados ramos, nascem cabras com chifres longos e recurvos, cabras de pêlos brancos, no cio, cadelas com cabeça humana, leoas, todas sem vida, mas galopam e saltam, berram as cabras, urram as leoas, as cachorras ladram, enfio a língua na boca de Abel, enfio a língua entre as flores que brotam ,em sua boca, duas cabras famintas sobem dos meus pés, sobem à minha língua, devoram as suas flores, ele diz que me ama. Equilibro-me, sustenho-me nos pés, insegura - e dou um passo. Que estranho, o peso do meu corpo sobre o chão! São muitos pesos, pendem e oscilam - dos braços, da cabeça, das pernas - em busca de um centro. Passo ante o espelho, vejo um rosto infantil. Meu? Em certas circunstâncias (à grande maioria das pessoas é vedada essa oportunidade), em certas circunstâncias, deitados, sob iluminação apropriada, nem excessiva nem pouca, entrefechadas as pálpebras, pode-se ver a membrana ante a pupila. Dispostas de maneira circular e com as extremidades voltadas para o centro da íris, há cinco ou seis formas (impossível contá-las, devido à rapidez com que se agitam) semelhantes a folhas, folhas ovadas, cujos pecíolos ficassem ocultos. Dessas folhas sem cor e sem nervuras, só as bordas, constituídas por uma espécie de luminosidade metálica, podem ser vistas; e movem-se, velozes, não cessam de mover-se, como se uma força tentas-se desfazê-las e toda a existência dessas formas consistisse num embate para manterem íntegras a aparência de folhas e a disposição circular. Vê-las, fascina, espanta e aterroriza: tem-se a impressão de que o olho é habitado por serpentes. Vendo meu rosto ao espelho, idêntica é a minha reação. Distingo uma ameaça tentando desfazer todos os meus traços. Meu rosto, a cada instante, voltando a ser o que é, vários rostos batendo-se, rostos enfurecidos, dotados de esporões, de garras, de dentes afiados, batendo-se entre si como as várias cabeças de uma hidra. Minhas tranças, crescidas, presas com fitas de veludo azul, tocam-me os ombros. Mais próxima do espelho, examino a risca ao longo da cabeça: entre os cabelos, penteados em tranças, nasce agora uma penugem clara, cabelos quase de recém-nascido, cabelos também meus, da outra cabeça, minha também, incrustada na minha. Duas? Uma? Ainda muda, evoco dia e noite o meu nome, intuído e buscado durante tanto tempo. Pronuncio-o em mim, faço-o correr em mim; rolar em mim. Pedra cheia de arestas, arredonda-se, seixo. Logo se dilui, dilui-se em mim, anilina, um matiz. Descubro a palavra boca; eu, o pronome; o verbo ser; uma partícula, em. Dois termos permanecem magicamente iluminados em meu novo mundo de limites, impossível que é elucidar se designam uma fração do mundo ou o mundo inteiro: aqui; lugar. Aposso-me da aditiva e, com seu dúplice poder de unir e separar, e então me divirto em encontrar e confrontar noções afins: ir e voar, veia e impulso, cão e látego, centro e espera, eu e vós, eu e eu. Meus dentes caem. Nascem outros, menores e mais frágeis que os anteriores. Conquanto ainda não fale, vou armando em mim palavras que ainda não existem. Tenderna é essa luz que evoca a porcelana e que vemos no quarto antes do amanhecer. Lanstoso: o ar da pessoa que deseja agredir-nos e não o faz por temor. Emarame: ato de ir e vir ao mesmo tempo e também o duplo, o indissolúvel movimento, ante o espelho, de um corpo refletido em seu cristal, desde que ambos - corpo e reflexo - sejam contemplados por alguém.

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